lunes, 26 de febrero de 2018

Depois do referendo de 4 de fevereiro

Por Decio Machado

Em 4 de fe­ve­reiro o povo equa­to­riano de­cidiu ter­minar com a he­ge­monia cor­reísta que do­minou o país nos úl­timos 11 anos. Dois de cada três ci­da­dãos vo­taram a favor das per­guntas da Con­sulta Po­pular im­pul­si­o­nada pelo Go­verno Na­ci­onal, em uma ló­gica de dis­puta aus­pi­ciada pelo ex-man­da­tário Ra­fael Correa, pro­du­zindo-se pela pri­meira vez na his­tória uma re­jeição ci­dadã ma­jo­ri­tária aos seus pos­tu­lados po­lí­ticos. Até então – me­di­ante con­sultas po­pu­lares, ple­bis­citos, re­fe­rendos – o ex-pre­si­dente Correa havia che­gado a acu­mular em apenas dez anos doze vi­tó­rias con­se­cu­tivas nas urnas.

Das sete per­guntas im­pul­si­o­nadas pelo Exe­cu­tivo, as três pri­meiras ti­nham re­lação di­reta com o cor­reísmo, abor­dando temas como:

•    A su­pressão de di­reitos po­lí­ticos de con­de­nados por cor­rupção, o que afeta a um nú­mero cada vez maior de altos fun­ci­o­ná­rios que for­maram parte do nú­cleo de poder do re­gime an­te­rior – já há uma de­zena de ex-mi­nis­tros cor­reístas que se en­con­tram im­pu­tados em di­fe­rentes pro­cessos e este nú­mero au­men­tará – e que po­deria ter­minar afe­tando o pró­prio Ra­fael Correa.

•    A eli­mi­nação da emenda cons­ti­tu­ci­onal apro­vada na úl­tima fase do go­verno an­te­rior, pela qual im­ple­men­tava a re­e­leição in­de­fi­nida nos cargos de gestão pú­blica a partir de 2021, e que per­mitia a Correa voltar a se apre­sentar, tal como era sua in­tenção, no pró­ximo pleito pre­si­den­cial;

•    E a re­com­po­sição do Con­selho de Par­ti­ci­pação Ci­dadã e Con­trole So­cial – po­pu­lar­mente co­nhe­cido como o quinto poder cons­ti­tu­ci­onal – cujos mem­bros de­sig­navam parte dos ti­tu­lares das ins­ti­tui­ções do país, o que per­mitiu ao apa­rato cor­reísta se­guir con­tro­lando a es­tru­tura do Es­tado, apesar de o ex-pre­si­dente não ocupar mais o cargo má­ximo.

O que foi o cor­reísmo?

Com­pre­ender a si­tu­ação atual do Equador sig­ni­fica en­tender o que foi isso que se con­ven­ci­onou chamar de cor­reísmo e porque deixou de ser fun­ci­onal neste mo­mento para as elites equa­to­ri­anas.

Desde 1997, a partir do go­verno de Ab­dalá Bu­caram, o Equador inau­gurou uma etapa de crise ins­ti­tu­ci­onal per­ma­nente que fez com que ne­nhum pre­si­dente eleito desde então nas urnas con­se­guisse ter­minar o man­dato.

Evi­den­te­mente, isso ge­rava grande ins­ta­bi­li­dade po­lí­tica e se tornou um fator de de­se­qui­lí­brio im­por­tante a res­peito de uma po­lí­tica de in­ves­ti­mentos que se fa­ziam cada vez mais ur­gentes e ne­ces­sá­rias para a mo­der­ni­zação ca­pi­ta­lista que o país de­veria em­pre­ender após a crise fi­nan­ceira de 1999 e 2000.

Com a en­trada do pre­sente sé­culo, a eco­nomia mun­dial se es­ta­bi­lizou, su­pe­rando vá­rias e im­por­tantes crises so­fridas em di­versos países do mundo – Mé­xico e Ve­ne­zuela (1994), Tai­lândia, In­do­nésia, Fi­li­pinas, Taiwan, Co­reia do Sul (1997), Rússia (1998), Brasil (1999) ou Ar­gen­tina (2001) – o que per­mitiu a me­lhora econô­mica in­ter­na­ci­onal, com taxas de cres­ci­mento de 4% a 6% no co­meço da dé­cada, até a che­gada da crise fi­nan­ceira global de 2008.

Da mesma forma, desde 2003 os preços das com­mo­di­ties au­men­taram pelos efeitos dos fu­ra­cões, como o Ka­trina, em ins­ta­la­ções pe­tro­leiras; o cres­ci­mento na eco­nomia; e, par­ti­cu­lar­mente, pelo auge da in­dús­tria da cons­trução, que ter­minou em uma bolha es­pe­cu­la­tiva cuja ex­plosão fez os in­ves­ti­dores vol­tarem suas pautas a mer­cados es­pe­cu­la­tivos, tais como de ouro e pe­tróleo, cau­sando uma su­per­de­manda ar­ti­fi­cial, o que fez o preço do óleo cru chegar ao seu ápice de 147,27 dó­lares o barril, em julho de 2008.

Neste con­texto, o óleo cru equa­to­riano, que de­pende da co­ti­zação do pe­tróleo norte-ame­ri­cano West Texas In­ter­me­diate (WTI) – que é o pa­râ­metro de óleo cru nos EUA - e ba­si­ca­mente é ven­dido tanto pela Pe­tro­E­cu­ador como pelas com­pa­nhias pri­vadas es­tran­geiras do país, também elevou no­ta­vel­mente seus preços.

Sendo um país eco­no­mi­ca­mente de­pen­dente de tal pro­duto, o cres­ci­mento médio do PIB equa­to­riano du­rante a pri­meira dé­cada do pre­sente sé­culo foi de 4,4%, en­quanto du­rante os dez anos an­te­ri­ores tal in­di­cador não su­perou 1,8%. O an­te­rior in­dica que a partir do ano 2000, a eco­nomia equa­to­riana co­meçou a con­so­lidar em grande me­dida apoiada pelas con­di­ções fa­vo­rá­veis – preço do pe­tróleo e re­messas pro­ve­ni­entes dos mi­grantes – ge­rando-se as con­di­ções ade­quadas para uma mo­der­ni­zação tardia do sis­tema ca­pi­ta­lista na­ci­onal.

Neste con­texto, o setor mais di­nâ­mico do ca­pital na­ci­onal en­tendeu que po­deria me­lhorar suas pos­si­bi­li­dades de ne­gócio pro­pi­ci­ando um maior nível de con­sumo nos mer­cados in­ternos através de certa di­visão do ex­ce­dente pe­tro­leiro – não da dis­tri­buição da ri­queza que con­tinua em mãos de poucos – e a in­cor­po­ração ao mer­cado de se­tores po­pu­lares me­di­ante o en­di­vi­da­mento fa­mi­liar e fi­nan­cei­ri­zação po­pular (de­mo­cra­ti­zação do con­sumo com base em em­prés­timos do setor fi­nan­ceiro pri­vado). Este é o papel que fun­da­men­tal­mente de­sem­pe­nhou o go­verno de Ra­fael Correa du­rante o úl­timo pe­ríodo de bo­nança econô­mica no Equador. 

Ao largo da pri­meira dé­cada do pre­sente sé­culo, a maior fatia de par­ti­ci­pação no PIB da eco­nomia na­ci­onal foi o con­sumo pri­vado, o qual re­pre­sentou uma média de 66,6% do PIB, con­ver­tendo-se em fator de maior con­tri­buição ao cres­ci­mento na­ci­onal du­rante o pe­ríodo prévio à queda de preços do pe­tróleo.

A di­na­mi­zação da eco­nomia na­ci­onal tendo como motor o Es­tado, eixo da po­lí­tica econô­mica cor­reísta, sig­ni­ficou que os se­tores em­pre­sa­riais e fi­nan­ceiros foram os prin­ci­pais be­ne­fi­ci­ados em uma ação que ca­recia de riscos para os in­ves­ti­mentos pri­vados, pois se fazia base do erário pú­blico.

O res­peito de­mons­trado pelo go­verno cor­reísta à ma­triz de acu­mu­lação her­dada da era ne­o­li­beral acar­retou na ine­xis­tência da mais mí­nima trans­for­mação de ca­ráter es­tru­tural sobre os pi­lares que fun­da­mentam os eixos cons­ti­tu­tivos do poder no Equador; isso, apesar de se­tores his­to­ri­ca­mente es­que­cidos po­derem se be­ne­fi­ciar du­rante o pe­ríodo de bo­nança de certas po­lí­ticas as­sis­ten­ci­a­listas, ba­se­adas na trans­fe­rência do ex­ce­dente de­ri­vado de apro­fun­da­mento das po­lí­ticas ex­tra­ti­vistas. De quebra, sig­ni­ficou que en­quanto se an­co­rava em um pro­pa­gan­dís­tico dis­curso so­be­ra­nista, no in­te­rior do país se pi­o­rava cada vez mais a de­pen­dência econô­mica in­ter­na­ci­onal dos mer­cados es­pe­cu­la­tivos glo­bais e se re­pri­ma­ri­zassem subs­tan­ci­al­mente a eco­nomia global.

O mo­delo econô­mico fun­ci­onou e in­clu­sive gozou de amplo apoio po­pular, mi­lagre econô­mico di­ziam, en­quanto durou o boom das com­mo­di­ties, indo abaixo toda a en­gre­nagem das po­lí­ticas so­ciais e econô­micas cor­reístas a partir da queda do preço do óleo cru em 2013.

É a partir de então, quando co­meçam a se de­te­ri­orar certos ser­viços pú­blicos, que a eco­nomia na­ci­onal se pa­ra­lisa, o con­sumo in­terno cai e os in­di­ca­dores de di­mi­nuição da po­breza e in­cre­mento da ca­pa­ci­dade aqui­si­tiva por parte dos tra­ba­lha­dores passa a de­cair.

Em fe­ve­reiro de 2014, o go­verno do pre­si­dente Ra­fael Correa co­me­çaria a sentir o des­gaste po­lí­tico de seu man­dato, per­dendo as elei­ções sec­ci­o­nais e as prin­ci­pais pre­fei­turas do país para par­tidos de opo­sição. Os se­tores em­pre­sa­riais que em outro mo­mento ti­nham sido be­ne­fi­ci­ados pelas po­lí­ticas cor­reístas, en­tendem ser hora de di­mi­nuir o gasto pú­blico, re­duzir o vo­lume do Es­tado e voltar a li­be­ra­lizar a eco­nomia. Ante a nova falta de li­quidez do Es­tado equa­to­riano, este deixou de ser fun­ci­onal para se­guir di­na­mi­zando a eco­nomia na­ci­onal, de modo que voltou a se co­locar em questão a po­lí­tica de sub­sí­dios so­ciais.

O an­te­rior sig­ni­ficou in­cre­mento das mo­bi­li­za­ções po­pu­lares no con­junto do país e de­rivou em uma con­vo­ca­tória de greve/mo­bi­li­zação em agosto de 2015, de parte do mo­vi­mento in­dí­gena e do sin­di­ca­lismo não cli­en­te­lista, que ter­minou ver­go­nho­sa­mente re­pri­mida pelas forças de se­gu­rança do Es­tado.

O con­flito entre Correa e Mo­reno

Em tais con­di­ções, e em meio a uma agres­siva po­lí­tica de en­di­vi­da­mento pú­blico que de­rivou na su­pe­ração do vo­lume atual de dí­vida ex­terna, com so­bras, dos ní­veis her­dados da época ne­o­li­beral, o então man­da­tário equa­to­riano de­cidiu não se apre­sentar às elei­ções de 2017, mas deixou aberta a porta para uma nova pos­tu­lação em 2021.

Es­tra­te­gi­ca­mente, o cor­reísmo con­si­derou que era me­lhor outro man­da­tário a pro­ceder as po­lí­ticas econô­micas de ajuste já ina­pe­la­vel­mente ne­ces­sá­rias ao país, per­mi­tindo assim uma re­ge­ne­ração da imagem de Ra­fael Correa, que es­tra­te­gi­ca­mente vol­taria em 2021 para “salvar” o Equador dos pro­gramas de ajuste, frutos de um dé­ficit bruto, ga­lo­pante e in­sus­ten­tável. Assim, em de­zembro de 2015, a ban­cada ofi­ci­a­lista aprovou for­ço­sa­mente uma re­forma cons­ti­tu­ci­onal que per­mitia a re­e­leição do man­da­tário para o pe­ríodo ime­di­a­ta­mente pos­te­rior a uma le­gis­la­tura mar­cada pela crise econô­mica her­dada da gestão de saída.

Ainda assim, a es­tra­tégia para a volta ao poder de Correa pas­sava pela ne­ces­si­dade de se­guir con­tro­lando o apa­rato de Es­tado du­rante o atual pe­ríodo, blo­que­ando qual­quer pos­si­bi­li­dade de fis­ca­li­zação e au­di­to­rias in­ternas que pu­desse se fazer sobre um mo­delo de gestão pú­blica al­ta­mente cor­rupto, que sig­ni­ficou du­rante dez anos a sub­missão de todos os po­deres e ór­gãos de con­trole do Es­tado pelo Exe­cu­tivo.

Isso im­plicou na ne­ces­si­dade de a Ali­ança PAIS ga­nhar em 2017, fi­cando a maior parte das ins­ti­tui­ções pú­blicas em mãos de ex-fun­ci­o­ná­rios de pro­vada pro­xi­mi­dade com o ex-pre­si­dente. A única fi­gura com a qual a Ali­ança PAIS con­tava para ga­nhar tais elei­ções era Lenin Mo­reno, que por suas fun­ções de en­viado es­pe­cial do Se­cre­tário Geral da ONU sobre a In­ca­pa­ci­dade e Aces­si­bi­li­dade re­sidia em Ge­nebra desde 2014, o que im­pli­cava no fato de ter se man­tido à margem da de­gra­dação cor­reísta dos úl­timos anos. 

De­vemos nos re­meter mais atrás no pas­sado his­tó­rico do Equador para en­con­trar um man­da­tário que de­pois de dez anos de gestão con­ti­nuada do poder ter­minou seu pe­ríodo com certo res­paldo po­lí­tico – apesar da de­ca­dência dos úl­timos anos – como era o caso de Ra­fael Correa. Apesar da po­la­ri­zação so­cial criada ao redor de sua fi­gura, Correa aban­donou a pol­trona pre­si­den­cial ainda sob im­por­tante apoio so­cial, fun­da­men­tal­mente entre os se­tores po­pu­lares, os quais re­co­nhe­ciam o im­pulso a pro­jetos so­ciais de ca­ráter as­sis­ten­ci­a­lista e o in­ves­ti­mento re­a­li­zado du­rante a úl­tima dé­cada no âm­bito da in­fra­es­tru­tura e mo­der­ni­zação do Es­tado. Ainda assim, foi uma grande con­ca­te­nação ace­le­rada de erros po­lí­ticos es­tra­té­gicos que fi­zeram com que o ex-man­da­tário per­desse a he­ge­monia po­lí­tica ainda man­tida no país.

Com a che­gada da nova ad­mi­nis­tração de Lenin, o cor­reísmo dei­xava em postos es­tra­té­gicos grande parte de sua equipe an­te­rior de gestão. Isso sig­ni­fi­cava que man­tinha o con­trole sobre enorme e des­me­dido apa­rato de pro­pa­ganda go­ver­na­mental, ar­ti­cu­lado na dé­cada pas­sada, tal como se fazia a res­peito do con­trole sobre a pro­dução – sobre a qual o Es­tado equa­to­riano tinha no­tável in­ci­dência du­rante os úl­timos dez anos – no altar das res­pon­sa­bi­li­dades es­ta­be­le­cidas em torno da fi­gura do vice-pre­si­dente da Re­pú­blica, Jorge Glas, o prin­cipal homem de con­fi­ança de Ra­fael Correa no novo ga­bi­nete, que se man­tinha como res­pon­sável da mu­dança de ma­triz pro­du­tiva e in­ves­ti­mento em me­ga­pro­jetos.

Mas ao tempo, o cor­reísmo man­tinha o con­trole também sobre a frente po­lí­tica do go­verno através de fi­guras como a pri­meira ti­tular da Se­cre­taria Na­ci­onal de Gestão Pú­blica (Paola Pabón) e do con­se­lheiro pre­si­den­cial (Ri­cardo Patiño), o prin­cipal ope­rador po­lí­tico dentro da Ali­ança PAIS du­rante a gestão an­te­rior, tal como fazia a res­peito da As­sem­bleia Na­ci­onal – o le­gis­la­tivo equa­to­riano – através de seus ope­ra­dores na ban­cada ma­jo­ri­tária da Ali­ança PAIS.

Não con­tente, Ra­fael Correa con­tro­lava também, me­di­ante o Con­selho de Par­ti­ci­pação Ci­dadã e Con­trole So­cial, os ór­gãos de fis­ca­li­zação e con­trole do apa­rato de Es­tado, cuja de­sig­nação de res­pon­sável res­pondia in­te­gral­mente a per­so­na­li­dades afi­nadas ao ex-pre­si­dente. Isso ocorreu em ins­ti­tui­ções como o Con­selho Na­ci­onal Elei­toral, a Corte Cons­ti­tu­ci­onal, a Con­tro­la­doria Geral do Es­tado, a Pro­cu­ra­doria Geral do Es­tado, o Tri­bunal Con­ten­cioso Elei­toral, o Con­selho do Ju­di­ciário ou a De­fen­soria do Povo, entre ou­tros.

Apesar das ten­sões entre Lenin Mo­reno e a ala dura cor­reísta serem pal­pá­veis, desde esse mesmo mo­mento, da in­ves­ti­dura do atual pre­si­dente da Re­pú­blica, em 24 de maio pas­sado, mo­mento em que a nova ad­mi­nis­tração des­co­briu o es­tado real das fi­nanças pú­blicas, foi a en­trega da sede so­cial da CO­NAIE – es­tru­tura or­ga­ni­za­tiva do mo­vi­mento in­dí­gena e or­ga­ni­zação so­cial mais im­por­tante do país – e o anúncio em julho pas­sado dos pri­meiros in­dultos de lí­deres po­pu­lares cri­mi­na­li­zados du­rante o re­gime an­te­rior que ge­raram re­a­ções des­qua­li­fi­ca­doras de Ra­fael Correa sobre seu su­cessor.

A partir daí os ope­ra­dores cor­reístas lo­ca­li­zados em fun­ções de di­reção dos dis­tintos meios pú­blicos co­meçam a ar­ti­cular uma cam­panha contra a imagem do pre­si­dente Mo­reno, adu­zindo que o país vol­tava às po­lí­ticas do pas­sado e que se es­tava pro­du­zindo uma di­visão de po­deres com as elites oli­gár­quicas, o que sig­ni­ficou que a nova ad­mi­nis­tração mo­re­nista no­me­asse novos res­pon­sá­veis em tais meios de co­mu­ni­cação e ór­gãos. Desta ma­neira, o ex-pre­si­dente Correa perdia o con­trole do imenso apa­rato de pro­pa­ganda e co­mu­ni­cação cuja cri­ação havia sido aus­pi­ciada por ele mesmo.

Um mês de­pois, em iní­cios de agosto e já com a água no pes­coço pelas in­ves­ti­ga­ções ju­di­ciais que se fa­ziam a res­peito da trama da Ode­brecht no Equador, o então vice-pre­si­dente Jorge Glas – que fora também o se­gundo man­da­tário du­rante a úl­tima fase da era Correa – emitia uma ex­tensa carta pú­blica contra o atual chefe de Es­tado, acu­sando-o de con­vergir com os se­tores po­li­ti­ca­mente mais re­a­ci­o­ná­rios do país. A rup­tura de re­la­ções entre o pre­si­dente Mo­reno e Jorge Glas acar­retou na ina­bi­li­tação do cargo do se­gundo, o que trouxe a perda de con­trole por parte de Ra­fael Correa sobre o apa­rato pro­du­tivo e os in­ves­ti­mentos nos me­ga­pro­jetos im­ple­men­tados no país. Meses mais tarde e fruto de in­ves­ti­ga­ções ju­di­ciais an­ti­cor­rupção, Jorge Glas ter­mi­naria ocu­pando uma cela na prisão nú­mero 4 de Quito e des­ti­tuído do cargo. O cor­reísmo perdia, por­tanto, também sua in­ci­dência no apa­rato pro­du­tivo.

Poucos dias de­pois do exa­brupto vice-pre­si­den­cial e em vias de so­lu­ci­onar este con­flito, o pre­si­dente Mo­reno en­vi­aria a Bru­xelas – lugar de re­si­dência atual de Correa – os prin­ci­pais ope­ra­dores po­lí­ticos de go­verno, todos eles vin­cu­lados du­rante a gestão an­te­rior do ex-man­da­tário, com o fim de re­con­duzir de forma ami­gável as re­la­ções com o ex-pre­si­dente. Para sur­presa do Exe­cu­tivo, de­pois da volta a Quito da dita de­le­gação, suas prin­ci­pais ca­beças – Ri­cardo Patiño, Paola Pabón e Vir­gílio Her­nandez – anun­ci­avam em co­le­tiva de im­prensa a re­núncia a seus cargos no Exe­cu­tivo. Desta ma­neira, Ra­fael Correa perdia o con­trole da frente po­lí­tica go­ver­na­mental.

Des­truídos todos os ca­nais de co­mu­ni­cação entre o cor­reísmo e o go­verno mo­re­nista, o pre­si­dente Mo­reno anun­ci­aria nos pri­meiros meses de ou­tubro pas­sado a con­vo­cação de uma Con­sulta Po­pular onde al­gumas per­guntas ti­nham a ver com uma ló­gica de re­forma ins­ti­tu­ci­onal pós-cau­di­lhista que le­vasse o país a um ca­minho de su­pe­ração do re­gime an­te­rior. Isso ter­mi­naria de di­na­mitar in­ter­na­mente o par­tido do go­verno. Os se­tores afins ao ex-man­da­tário de­ter­mi­naram a ex­pulsão, de forma ir­re­gular, de Lenin Mo­reno da Ali­ança PAIS con­vo­cando sem le­gi­ti­mi­dade ju­rí­dica uma con­venção na­ci­onal da or­ga­ni­zação po­lí­tica com es­casso êxito de adesão. O fato an­te­rior acar­retou, de­pois de uma de­cisão do Tri­bunal Con­ten­cioso Elei­toral, na perda do cor­reísmo do con­trole do pró­prio par­tido. 

O úl­timo epi­sódio deste mar de de­sa­certos cor­reístas se deu já em ja­neiro do pre­sente ano, quando Correa chamou à des­fi­li­ação seus se­gui­dores de Ali­ança PAIS, o que im­plicou também na perda de con­trole do le­gis­la­tivo, fi­cando com apenas 29 par­la­men­tares, en­quanto os ou­tros 45 se ali­nharam a Lenín Mo­reno.

Em suma, apesar de ser di­fícil en­con­trar um ex-pre­si­dente que de­pois de dez anos de gestão man­ti­vesse o nível de apoio de Correa, também é di­fícil en­con­trar algum que tenha de­mons­trado tal ca­pa­ci­dade para di­la­pidá-lo tão ra­pi­da­mente.

Con­sulta e pós-con­sulta

Foi assim que se chegou a 4 de fe­ve­reiro, mo­mento em que o cor­reísmo sa­bo­reou pela pri­meira vez uma der­rota elei­toral. No fundo, as­sis­timos algo que foi mais além da re­a­li­zação po­lí­tica de uma re­a­li­dade in­dis­cu­tível no Equador: o cor­reísmo nunca cons­truiu uma força so­cial e po­lí­tica afim, mas uti­lizou o apa­rato de Es­tado ope­rando sob ló­gicas cli­en­te­listas em favor de um par­tido de go­verno e da cons­trução da imagem mi­diá­tica de Ra­fael Correa como um grande cau­dilho po­pu­lista. Isso im­plicou em que, após o aban­dono da ca­deira pre­si­den­cial e da re­cusa de seus ca­pri­chos nas ins­ti­tui­ções do Es­tado, seu apoio po­lí­tico di­mi­nuísse no­ta­vel­mente.

A so­ci­e­dade equa­to­riana votou pela con­for­mação de um re­gime de tran­sição que per­mitia su­perar a he­rança im­plan­tada pelo go­verno an­te­rior, ge­rando as con­di­ções para a cons­trução de um novo ce­nário po­lí­tico após o fim da he­ge­monia cor­reísta. Foi cor­tado o cordão um­bi­lical que vin­cu­lava o novo go­verno ao an­te­rior, o que de­sa­bi­lita a nar­ra­tiva cor­reísta de que Lenin Mo­reno ocupa a pre­si­dência do país graças ao en­dosso de votos de­ri­vado da fi­gura de Ra­fael Correa.

Após a con­sulta o país entra em uma nova fase po­lí­tica. Por um lado, o pre­si­dente Lenin Mo­reno ga­nhou mo­men­ta­ne­a­mente sua dis­puta com o an­te­cessor, apesar de Correa ainda manter um terço do elei­to­rado equa­to­riano. Correa e seus se­gui­dores, após a des­fi­li­ação da Ali­ança PAIS, estão obri­gados a con­formar um novo mo­vi­mento po­lí­tico na­ci­onal, apesar de a po­pu­la­ri­dade de seu líder estar em de­ca­dência. Correa, cons­ci­ente de que o setor de an­tigos lí­deres da Ali­ança PAIS que o acom­pa­nham nesta nova aven­tura acres­centam re­al­mente pouco, dada a má imagem di­ante da so­ci­e­dade, está obri­gado a li­derar pes­so­al­mente a cons­trução do novo par­tido. Será uma ta­refa ur­gente e nada fácil para o ne­o­cor­reísmo criar uma nova fi­gura po­lí­tica que tenha chances de dis­putar a pre­si­dência da Re­pú­blica em 2021.

Por sua parte, a von­tade de tal ten­dência é ocupar o es­paço po­lí­tico da es­querda equa­to­riana, algo que já fi­zeram em 2006, apesar dos de­sen­con­tros entre seu dis­curso e sua prá­tica. Con­se­guir tal ob­je­tivo passa por blo­quear qual­quer pos­si­bi­li­dade de cons­trução de al­ter­na­tivas po­lí­ticas no campo po­pular, algo ur­gen­te­mente ne­ces­sário para um país que sofre de uma es­querda cujo dis­curso po­lí­tico se en­contra sem ca­pa­ci­dade de sin­tonia com a so­ci­e­dade, onde não existe ge­ração de novas li­de­ranças, e que se vê ca­rente de cons­truir uma pro­posta con­vin­cente para um novo mo­delo de so­ci­e­dade e país.

Apesar de ser certo que a es­querda po­lí­tica e so­cial equa­to­riana foi fra­ci­o­nada, em muitos casos co­op­tada e até per­se­guida pelo re­gime cor­reísta du­rante os úl­timos dez anos, também é certo que existe uma in­ca­pa­ci­dade po­lí­tica por parte de sua en­do­gâ­mica di­ri­gência para se rein­ventar e re­po­si­ci­onar, com um dis­curso adap­tado ao mo­mento atual do país. O mero fato de que grande parte de tal es­querda apoiou em sua ló­gica an­ti­cor­reísta a can­di­da­tura do con­ser­vador Guil­lermo Lasso no se­gundo turno das úl­timas elei­ções pre­si­den­ciais é uma de­mons­tração pal­pável de sua de­so­ri­en­tação po­lí­tica e des­cré­dito do que atu­al­mente gozam na ci­da­dania equa­to­riana. Nas fi­leiras con­ser­va­doras, as forças po­lí­ticas que até o mo­mento de­ci­diram não fazer opo­sição po­lí­tica con­tumaz ao atual go­verno mu­daram de ati­tude.

A pro­xi­mi­dade de elei­ções sec­ci­o­nais, daqui um ano, faz as or­ga­ni­za­ções po­lí­ticas da di­reita vol­tarem a as­sumir pro­ta­go­nismo de­pois de uma ali­ança an­ti­na­tural que per­mitiu a sen­si­bi­li­dades ide­o­ló­gicas muito di­fe­rentes um pacto de não agressão em troca de tra­ba­lharem, todos juntos, pelo Sim nesta con­sulta, em nome da fi­na­li­dade de en­terrar po­li­ti­ca­mente o cor­reísmo. 

Meios de co­mu­ni­cação, se­tores em­pre­sa­riais e forças po­lí­ticas con­ser­va­doras já anun­ci­aram mu­danças sobre sua ação di­ante do go­verno de Lenín Mo­reno, o que sig­ni­fi­cará o au­mento da pressão po­lí­tica e pos­si­vel­mente de ma­ni­fes­ta­ções de rua, no sen­tido de que o go­verno adote po­si­ções mais re­a­ci­o­ná­rias fun­da­men­tal­mente no âm­bito da po­lí­tica econô­mica.

Em todo caso, os se­tores da di­reita se mantêm di­vi­didos, exis­tindo duas ca­beças, até agora po­li­ti­ca­mente en­fren­tadas, que res­pondem a grupos de in­te­resses di­fe­rentes. Tanto Guil­lermo Lasso, de forma aberta, como Jaime Nebot, de ma­neira mais sutil, as­piram à pre­si­dência da Re­pú­blica no ano de 2021 ou até antes, se forem ca­pazes de forçar o fim an­te­ci­pado do man­dato mo­re­nista, um go­verno sobre o qual vi­su­a­lizam de­bi­li­dades não exis­tentes no an­te­rior.

Por­tanto, o go­verno na­ci­onal en­frenta uma si­tu­ação iné­dita a partir de agora, a qual con­sis­tirá em re­ceber de forma in­dis­cri­mi­nada ata­ques tanto da di­reita – in­clu­sive meios de co­mu­ni­cação pri­vados e lob­bies em­pre­sa­riais como nesta pre­ten­dida nova es­querda cor­reísta. Que Lenín Mo­reno e sua equipe de gestão sejam ca­pazes de fazer frente a tais pres­sões está por ser visto. De todo modo, a es­tra­tégia de um e outro lado já co­meçou, em al­guns casos até com apoio in­ter­na­ci­onal, tal como no caso de Correa, que em breve dis­porá da pla­ta­forma te­le­vi­siva Rus­sian Today (RT), um meio de co­mu­ni­cação sen­sa­ci­o­na­lista a ser­viço do apa­rato de pro­pa­ganda de Vla­dimir Putin, como fer­ra­menta de ataque ao atual go­verno.
Em 4 de fevereiro o povo equatoriano decidiu terminar com a hegemonia correísta que dominou o país nos últimos 11 anos. Dois de cada três cidadãos votaram a favor das perguntas da Consulta Popular impulsionada pelo Governo Nacional, em uma lógica de disputa auspiciada pelo ex-mandatário Rafael Correa, produzindo-se pela primeira vez na história uma rejeição cidadã majoritária aos seus postulados políticos. Até então – mediante consultas populares, plebiscitos, referendos – o ex-presidente Correa havia chegado a acumular em apenas dez anos doze vitórias consecutivas nas urnas.

Das sete perguntas impulsionadas pelo Executivo, as três primeiras tinham relação direta com o correísmo, abordando temas como:

•    A supressão de direitos políticos de condenados por corrupção, o que afeta a um número cada vez maior de altos funcionários que formaram parte do núcleo de poder do regime anterior – já há uma dezena de ex-ministros correístas que se encontram imputados em diferentes processos e este número aumentará – e que poderia terminar afetando o próprio Rafael Correa.

•    A eliminação da emenda constitucional aprovada na última fase do governo anterior, pela qual implementava a reeleição indefinida nos cargos de gestão pública a partir de 2021, e que permitia a Correa voltar a se apresentar, tal como era sua intenção, no próximo pleito presidencial;

•    E a recomposição do Conselho de Participação Cidadã e Controle Social – popularmente conhecido como o quinto poder constitucional – cujos membros designavam parte dos titulares das instituições do país, o que permitiu ao aparato correísta seguir controlando a estrutura do Estado, apesar de o ex-presidente não ocupar mais o cargo máximo.

O que foi o correísmo?

Compreender a situação atual do Equador significa entender o que foi isso que se convencionou chamar de correísmo e porque deixou de ser funcional neste momento para as elites equatorianas.

Desde 1997, a partir do governo de Abdalá Bucaram, o Equador inaugurou uma etapa de crise institucional permanente que fez com que nenhum presidente eleito desde então nas urnas conseguisse terminar o mandato.

Evidentemente, isso gerava grande instabilidade política e se tornou um fator de desequilíbrio importante a respeito de uma política de investimentos que se faziam cada vez mais urgentes e necessárias para a modernização capitalista que o país deveria empreender após a crise financeira de 1999 e 2000.

Com a entrada do presente século, a economia mundial se estabilizou, superando várias e importantes crises sofridas em diversos países do mundo – México e Venezuela (1994), Tailândia, Indonésia, Filipinas, Taiwan, Coreia do Sul (1997), Rússia (1998), Brasil (1999) ou Argentina (2001) – o que permitiu a melhora econômica internacional, com taxas de crescimento de 4% a 6% no começo da década, até a chegada da crise financeira global de 2008.

Da mesma forma, desde 2003 os preços das commodities aumentaram pelos efeitos dos furacões, como o Katrina, em instalações petroleiras; o crescimento na economia; e, particularmente, pelo auge da indústria da construção, que terminou em uma bolha especulativa cuja explosão fez os investidores voltarem suas pautas a mercados especulativos, tais como de ouro e petróleo, causando uma superdemanda artificial, o que fez o preço do óleo cru chegar ao seu ápice de 147,27 dólares o barril, em julho de 2008.

Neste contexto, o óleo cru equatoriano, que depende da cotização do petróleo norte-americano West Texas Intermediate (WTI) – que é o parâmetro de óleo cru nos EUA - e basicamente é vendido tanto pela PetroEcuador como pelas companhias privadas estrangeiras do país, também elevou notavelmente seus preços.

Sendo um país economicamente dependente de tal produto, o crescimento médio do PIB equatoriano durante a primeira década do presente século foi de 4,4%, enquanto durante os dez anos anteriores tal indicador não superou 1,8%. O anterior indica que a partir do ano 2000, a economia equatoriana começou a consolidar em grande medida apoiada pelas condições favoráveis – preço do petróleo e remessas provenientes dos migrantes – gerando-se as condições adequadas para uma modernização tardia do sistema capitalista nacional.

Neste contexto, o setor mais dinâmico do capital nacional entendeu que poderia melhorar suas possibilidades de negócio propiciando um maior nível de consumo nos mercados internos através de certa divisão do excedente petroleiro – não da distribuição da riqueza que continua em mãos de poucos – e a incorporação ao mercado de setores populares mediante o endividamento familiar e financeirização popular (democratização do consumo com base em empréstimos do setor financeiro privado). Este é o papel que fundamentalmente desempenhou o governo de Rafael Correa durante o último período de bonança econômica no Equador. 

Ao largo da primeira década do presente século, a maior fatia de participação no PIB da economia nacional foi o consumo privado, o qual representou uma média de 66,6% do PIB, convertendo-se em fator de maior contribuição ao crescimento nacional durante o período prévio à queda de preços do petróleo.

A dinamização da economia nacional tendo como motor o Estado, eixo da política econômica correísta, significou que os setores empresariais e financeiros foram os principais beneficiados em uma ação que carecia de riscos para os investimentos privados, pois se fazia base do erário público.

O respeito demonstrado pelo governo correísta à matriz de acumulação herdada da era neoliberal acarretou na inexistência da mais mínima transformação de caráter estrutural sobre os pilares que fundamentam os eixos constitutivos do poder no Equador; isso, apesar de setores historicamente esquecidos poderem se beneficiar durante o período de bonança de certas políticas assistencialistas, baseadas na transferência do excedente derivado de aprofundamento das políticas extrativistas. De quebra, significou que enquanto se ancorava em um propagandístico discurso soberanista, no interior do país se piorava cada vez mais a dependência econômica internacional dos mercados especulativos globais e se reprimarizassem substancialmente a economia global.

O modelo econômico funcionou e inclusive gozou de amplo apoio popular, milagre econômico diziam, enquanto durou o boom das commodities, indo abaixo toda a engrenagem das políticas sociais e econômicas correístas a partir da queda do preço do óleo cru em 2013.

É a partir de então, quando começam a se deteriorar certos serviços públicos, que a economia nacional se paralisa, o consumo interno cai e os indicadores de diminuição da pobreza e incremento da capacidade aquisitiva por parte dos trabalhadores passa a decair.

Em fevereiro de 2014, o governo do presidente Rafael Correa começaria a sentir o desgaste político de seu mandato, perdendo as eleições seccionais e as principais prefeituras do país para partidos de oposição. Os setores empresariais que em outro momento tinham sido beneficiados pelas políticas correístas, entendem ser hora de diminuir o gasto público, reduzir o volume do Estado e voltar a liberalizar a economia. Ante a nova falta de liquidez do Estado equatoriano, este deixou de ser funcional para seguir dinamizando a economia nacional, de modo que voltou a se colocar em questão a política de subsídios sociais.

O anterior significou incremento das mobilizações populares no conjunto do país e derivou em uma convocatória de greve/mobilização em agosto de 2015, de parte do movimento indígena e do sindicalismo não clientelista, que terminou vergonhosamente reprimida pelas forças de segurança do Estado.

O conflito entre Correa e Moreno

Em tais condições, e em meio a uma agressiva política de endividamento público que derivou na superação do volume atual de dívida externa, com sobras, dos níveis herdados da época neoliberal, o então mandatário equatoriano decidiu não se apresentar às eleições de 2017, mas deixou aberta a porta para uma nova postulação em 2021.

Estrategicamente, o correísmo considerou que era melhor outro mandatário a proceder as políticas econômicas de ajuste já inapelavelmente necessárias ao país, permitindo assim uma regeneração da imagem de Rafael Correa, que estrategicamente voltaria em 2021 para “salvar” o Equador dos programas de ajuste, frutos de um déficit bruto, galopante e insustentável. Assim, em dezembro de 2015, a bancada oficialista aprovou forçosamente uma reforma constitucional que permitia a reeleição do mandatário para o período imediatamente posterior a uma legislatura marcada pela crise econômica herdada da gestão de saída.

Ainda assim, a estratégia para a volta ao poder de Correa passava pela necessidade de seguir controlando o aparato de Estado durante o atual período, bloqueando qualquer possibilidade de fiscalização e auditorias internas que pudesse se fazer sobre um modelo de gestão pública altamente corrupto, que significou durante dez anos a submissão de todos os poderes e órgãos de controle do Estado pelo Executivo.

Isso implicou na necessidade de a Aliança PAIS ganhar em 2017, ficando a maior parte das instituições públicas em mãos de ex-funcionários de provada proximidade com o ex-presidente. A única figura com a qual a Aliança PAIS contava para ganhar tais eleições era Lenin Moreno, que por suas funções de enviado especial do Secretário Geral da ONU sobre a Incapacidade e Acessibilidade residia em Genebra desde 2014, o que implicava no fato de ter se mantido à margem da degradação correísta dos últimos anos. 

Devemos nos remeter mais atrás no passado histórico do Equador para encontrar um mandatário que depois de dez anos de gestão continuada do poder terminou seu período com certo respaldo político – apesar da decadência dos últimos anos – como era o caso de Rafael Correa. Apesar da polarização social criada ao redor de sua figura, Correa abandonou a poltrona presidencial ainda sob importante apoio social, fundamentalmente entre os setores populares, os quais reconheciam o impulso a projetos sociais de caráter assistencialista e o investimento realizado durante a última década no âmbito da infraestrutura e modernização do Estado. Ainda assim, foi uma grande concatenação acelerada de erros políticos estratégicos que fizeram com que o ex-mandatário perdesse a hegemonia política ainda mantida no país.

Com a chegada da nova administração de Lenin, o correísmo deixava em postos estratégicos grande parte de sua equipe anterior de gestão. Isso significava que mantinha o controle sobre enorme e desmedido aparato de propaganda governamental, articulado na década passada, tal como se fazia a respeito do controle sobre a produção – sobre a qual o Estado equatoriano tinha notável incidência durante os últimos dez anos – no altar das responsabilidades estabelecidas em torno da figura do vice-presidente da República, Jorge Glas, o principal homem de confiança de Rafael Correa no novo gabinete, que se mantinha como responsável da mudança de matriz produtiva e investimento em megaprojetos.

Mas ao tempo, o correísmo mantinha o controle também sobre a frente política do governo através de figuras como a primeira titular da Secretaria Nacional de Gestão Pública (Paola Pabón) e do conselheiro presidencial (Ricardo Patiño), o principal operador político dentro da Aliança PAIS durante a gestão anterior, tal como fazia a respeito da Assembleia Nacional – o legislativo equatoriano – através de seus operadores na bancada majoritária da Aliança PAIS.

Não contente, Rafael Correa controlava também, mediante o Conselho de Participação Cidadã e Controle Social, os órgãos de fiscalização e controle do aparato de Estado, cuja designação de responsável respondia integralmente a personalidades afinadas ao ex-presidente. Isso ocorreu em instituições como o Conselho Nacional Eleitoral, a Corte Constitucional, a Controladoria Geral do Estado, a Procuradoria Geral do Estado, o Tribunal Contencioso Eleitoral, o Conselho do Judiciário ou a Defensoria do Povo, entre outros.

Apesar das tensões entre Lenin Moreno e a ala dura correísta serem palpáveis, desde esse mesmo momento, da investidura do atual presidente da República, em 24 de maio passado, momento em que a nova administração descobriu o estado real das finanças públicas, foi a entrega da sede social da CONAIE – estrutura organizativa do movimento indígena e organização social mais importante do país – e o anúncio em julho passado dos primeiros indultos de líderes populares criminalizados durante o regime anterior que geraram reações desqualificadoras de Rafael Correa sobre seu sucessor.

A partir daí os operadores correístas localizados em funções de direção dos distintos meios públicos começam a articular uma campanha contra a imagem do presidente Moreno, aduzindo que o país voltava às políticas do passado e que se estava produzindo uma divisão de poderes com as elites oligárquicas, o que significou que a nova administração morenista nomeasse novos responsáveis em tais meios de comunicação e órgãos. Desta maneira, o ex-presidente Correa perdia o controle do imenso aparato de propaganda e comunicação cuja criação havia sido auspiciada por ele mesmo.

Um mês depois, em inícios de agosto e já com a água no pescoço pelas investigações judiciais que se faziam a respeito da trama da Odebrecht no Equador, o então vice-presidente Jorge Glas – que fora também o segundo mandatário durante a última fase da era Correa – emitia uma extensa carta pública contra o atual chefe de Estado, acusando-o de convergir com os setores politicamente mais reacionários do país. A ruptura de relações entre o presidente Moreno e Jorge Glas acarretou na inabilitação do cargo do segundo, o que trouxe a perda de controle por parte de Rafael Correa sobre o aparato produtivo e os investimentos nos megaprojetos implementados no país. Meses mais tarde e fruto de investigações judiciais anticorrupção, Jorge Glas terminaria ocupando uma cela na prisão número 4 de Quito e destituído do cargo. O correísmo perdia, portanto, também sua incidência no aparato produtivo.

Poucos dias depois do exabrupto vice-presidencial e em vias de solucionar este conflito, o presidente Moreno enviaria a Bruxelas – lugar de residência atual de Correa – os principais operadores políticos de governo, todos eles vinculados durante a gestão anterior do ex-mandatário, com o fim de reconduzir de forma amigável as relações com o ex-presidente. Para surpresa do Executivo, depois da volta a Quito da dita delegação, suas principais cabeças – Ricardo Patiño, Paola Pabón e Virgílio Hernandez – anunciavam em coletiva de imprensa a renúncia a seus cargos no Executivo. Desta maneira, Rafael Correa perdia o controle da frente política governamental.

Destruídos todos os canais de comunicação entre o correísmo e o governo morenista, o presidente Moreno anunciaria nos primeiros meses de outubro passado a convocação de uma Consulta Popular onde algumas perguntas tinham a ver com uma lógica de reforma institucional pós-caudilhista que levasse o país a um caminho de superação do regime anterior. Isso terminaria de dinamitar internamente o partido do governo. Os setores afins ao ex-mandatário determinaram a expulsão, de forma irregular, de Lenin Moreno da Aliança PAIS convocando sem legitimidade jurídica uma convenção nacional da organização política com escasso êxito de adesão. O fato anterior acarretou, depois de uma decisão do Tribunal Contencioso Eleitoral, na perda do correísmo do controle do próprio partido. 

O último episódio deste mar de desacertos correístas se deu já em janeiro do presente ano, quando Correa chamou à desfiliação seus seguidores de Aliança PAIS, o que implicou também na perda de controle do legislativo, ficando com apenas 29 parlamentares, enquanto os outros 45 se alinharam a Lenín Moreno.

Em suma, apesar de ser difícil encontrar um ex-presidente que depois de dez anos de gestão mantivesse o nível de apoio de Correa, também é difícil encontrar algum que tenha demonstrado tal capacidade para dilapidá-lo tão rapidamente.

Consulta e pós-consulta

Foi assim que se chegou a 4 de fevereiro, momento em que o correísmo saboreou pela primeira vez uma derrota eleitoral. No fundo, assistimos algo que foi mais além da realização política de uma realidade indiscutível no Equador: o correísmo nunca construiu uma força social e política afim, mas utilizou o aparato de Estado operando sob lógicas clientelistas em favor de um partido de governo e da construção da imagem midiática de Rafael Correa como um grande caudilho populista. Isso implicou em que, após o abandono da cadeira presidencial e da recusa de seus caprichos nas instituições do Estado, seu apoio político diminuísse notavelmente.

A sociedade equatoriana votou pela conformação de um regime de transição que permitia superar a herança implantada pelo governo anterior, gerando as condições para a construção de um novo cenário político após o fim da hegemonia correísta. Foi cortado o cordão umbilical que vinculava o novo governo ao anterior, o que desabilita a narrativa correísta de que Lenin Moreno ocupa a presidência do país graças ao endosso de votos derivado da figura de Rafael Correa.

Após a consulta o país entra em uma nova fase política. Por um lado, o presidente Lenin Moreno ganhou momentaneamente sua disputa com o antecessor, apesar de Correa ainda manter um terço do eleitorado equatoriano. Correa e seus seguidores, após a desfiliação da Aliança PAIS, estão obrigados a conformar um novo movimento político nacional, apesar de a popularidade de seu líder estar em decadência. Correa, consciente de que o setor de antigos líderes da Aliança PAIS que o acompanham nesta nova aventura acrescentam realmente pouco, dada a má imagem diante da sociedade, está obrigado a liderar pessoalmente a construção do novo partido. Será uma tarefa urgente e nada fácil para o neocorreísmo criar uma nova figura política que tenha chances de disputar a presidência da República em 2021.

Por sua parte, a vontade de tal tendência é ocupar o espaço político da esquerda equatoriana, algo que já fizeram em 2006, apesar dos desencontros entre seu discurso e sua prática. Conseguir tal objetivo passa por bloquear qualquer possibilidade de construção de alternativas políticas no campo popular, algo urgentemente necessário para um país que sofre de uma esquerda cujo discurso político se encontra sem capacidade de sintonia com a sociedade, onde não existe geração de novas lideranças, e que se vê carente de construir uma proposta convincente para um novo modelo de sociedade e país.

Apesar de ser certo que a esquerda política e social equatoriana foi fracionada, em muitos casos cooptada e até perseguida pelo regime correísta durante os últimos dez anos, também é certo que existe uma incapacidade política por parte de sua endogâmica dirigência para se reinventar e reposicionar, com um discurso adaptado ao momento atual do país. O mero fato de que grande parte de tal esquerda apoiou em sua lógica anticorreísta a candidatura do conservador Guillermo Lasso no segundo turno das últimas eleições presidenciais é uma demonstração palpável de sua desorientação política e descrédito do que atualmente gozam na cidadania equatoriana. Nas fileiras conservadoras, as forças políticas que até o momento decidiram não fazer oposição política contumaz ao atual governo mudaram de atitude.

A proximidade de eleições seccionais, daqui um ano, faz as organizações políticas da direita voltarem a assumir protagonismo depois de uma aliança antinatural que permitiu a sensibilidades ideológicas muito diferentes um pacto de não agressão em troca de trabalharem, todos juntos, pelo Sim nesta consulta, em nome da finalidade de enterrar politicamente o correísmo. 

Meios de comunicação, setores empresariais e forças políticas conservadoras já anunciaram mudanças sobre sua ação diante do governo de Lenín Moreno, o que significará o aumento da pressão política e possivelmente de manifestações de rua, no sentido de que o governo adote posições mais reacionárias fundamentalmente no âmbito da política econômica.

Em todo caso, os setores da direita se mantêm divididos, existindo duas cabeças, até agora politicamente enfrentadas, que respondem a grupos de interesses diferentes. Tanto Guillermo Lasso, de forma aberta, como Jaime Nebot, de maneira mais sutil, aspiram à presidência da República no ano de 2021 ou até antes, se forem capazes de forçar o fim antecipado do mandato morenista, um governo sobre o qual visualizam debilidades não existentes no anterior.

Portanto, o governo nacional enfrenta uma situação inédita a partir de agora, a qual consistirá em receber de forma indiscriminada ataques tanto da direita – inclusive meios de comunicação privados e lobbies empresariais como nesta pretendida nova esquerda correísta. Que Lenín Moreno e sua equipe de gestão sejam capazes de fazer frente a tais pressões está por ser visto. De todo modo, a estratégia de um e outro lado já começou, em alguns casos até com apoio internacional, tal como no caso de Correa, que em breve disporá da plataforma televisiva Russian Today (RT), um meio de comunicação sensacionalista a serviço do aparato de propaganda de Vladimir Putin, como ferramenta de ataque ao atual governo.


Em 4 de fevereiro o povo equatoriano decidiu terminar com a hegemonia correísta que dominou o país nos últimos 11 anos. Dois de cada três cidadãos votaram a favor das perguntas da Consulta Popular impulsionada pelo Governo Nacional, em uma lógica de disputa auspiciada pelo ex-mandatário Rafael Correa, produzindo-se pela primeira vez na história uma rejeição cidadã majoritária aos seus postulados políticos. Até então – mediante consultas populares, plebiscitos, referendos – o ex-presidente Correa havia chegado a acumular em apenas dez anos doze vitórias consecutivas nas urnas.

Das sete perguntas impulsionadas pelo Executivo, as três primeiras tinham relação direta com o correísmo, abordando temas como:

•    A supressão de direitos políticos de condenados por corrupção, o que afeta a um número cada vez maior de altos funcionários que formaram parte do núcleo de poder do regime anterior – já há uma dezena de ex-ministros correístas que se encontram imputados em diferentes processos e este número aumentará – e que poderia terminar afetando o próprio Rafael Correa.

•    A eliminação da emenda constitucional aprovada na última fase do governo anterior, pela qual implementava a reeleição indefinida nos cargos de gestão pública a partir de 2021, e que permitia a Correa voltar a se apresentar, tal como era sua intenção, no próximo pleito presidencial;

•    E a recomposição do Conselho de Participação Cidadã e Controle Social – popularmente conhecido como o quinto poder constitucional – cujos membros designavam parte dos titulares das instituições do país, o que permitiu ao aparato correísta seguir controlando a estrutura do Estado, apesar de o ex-presidente não ocupar mais o cargo máximo.

O que foi o correísmo?

Compreender a situação atual do Equador significa entender o que foi isso que se convencionou chamar de correísmo e porque deixou de ser funcional neste momento para as elites equatorianas.

Desde 1997, a partir do governo de Abdalá Bucaram, o Equador inaugurou uma etapa de crise institucional permanente que fez com que nenhum presidente eleito desde então nas urnas conseguisse terminar o mandato.

Evidentemente, isso gerava grande instabilidade política e se tornou um fator de desequilíbrio importante a respeito de uma política de investimentos que se faziam cada vez mais urgentes e necessárias para a modernização capitalista que o país deveria empreender após a crise financeira de 1999 e 2000.

Com a entrada do presente século, a economia mundial se estabilizou, superando várias e importantes crises sofridas em diversos países do mundo – México e Venezuela (1994), Tailândia, Indonésia, Filipinas, Taiwan, Coreia do Sul (1997), Rússia (1998), Brasil (1999) ou Argentina (2001) – o que permitiu a melhora econômica internacional, com taxas de crescimento de 4% a 6% no começo da década, até a chegada da crise financeira global de 2008.

Da mesma forma, desde 2003 os preços das commodities aumentaram pelos efeitos dos furacões, como o Katrina, em instalações petroleiras; o crescimento na economia; e, particularmente, pelo auge da indústria da construção, que terminou em uma bolha especulativa cuja explosão fez os investidores voltarem suas pautas a mercados especulativos, tais como de ouro e petróleo, causando uma superdemanda artificial, o que fez o preço do óleo cru chegar ao seu ápice de 147,27 dólares o barril, em julho de 2008.

Neste contexto, o óleo cru equatoriano, que depende da cotização do petróleo norte-americano West Texas Intermediate (WTI) – que é o parâmetro de óleo cru nos EUA - e basicamente é vendido tanto pela PetroEcuador como pelas companhias privadas estrangeiras do país, também elevou notavelmente seus preços.

Sendo um país economicamente dependente de tal produto, o crescimento médio do PIB equatoriano durante a primeira década do presente século foi de 4,4%, enquanto durante os dez anos anteriores tal indicador não superou 1,8%. O anterior indica que a partir do ano 2000, a economia equatoriana começou a consolidar em grande medida apoiada pelas condições favoráveis – preço do petróleo e remessas provenientes dos migrantes – gerando-se as condições adequadas para uma modernização tardia do sistema capitalista nacional.

Neste contexto, o setor mais dinâmico do capital nacional entendeu que poderia melhorar suas possibilidades de negócio propiciando um maior nível de consumo nos mercados internos através de certa divisão do excedente petroleiro – não da distribuição da riqueza que continua em mãos de poucos – e a incorporação ao mercado de setores populares mediante o endividamento familiar e financeirização popular (democratização do consumo com base em empréstimos do setor financeiro privado). Este é o papel que fundamentalmente desempenhou o governo de Rafael Correa durante o último período de bonança econômica no Equador. 

Ao largo da primeira década do presente século, a maior fatia de participação no PIB da economia nacional foi o consumo privado, o qual representou uma média de 66,6% do PIB, convertendo-se em fator de maior contribuição ao crescimento nacional durante o período prévio à queda de preços do petróleo.

A dinamização da economia nacional tendo como motor o Estado, eixo da política econômica correísta, significou que os setores empresariais e financeiros foram os principais beneficiados em uma ação que carecia de riscos para os investimentos privados, pois se fazia base do erário público.

O respeito demonstrado pelo governo correísta à matriz de acumulação herdada da era neoliberal acarretou na inexistência da mais mínima transformação de caráter estrutural sobre os pilares que fundamentam os eixos constitutivos do poder no Equador; isso, apesar de setores historicamente esquecidos poderem se beneficiar durante o período de bonança de certas políticas assistencialistas, baseadas na transferência do excedente derivado de aprofundamento das políticas extrativistas. De quebra, significou que enquanto se ancorava em um propagandístico discurso soberanista, no interior do país se piorava cada vez mais a dependência econômica internacional dos mercados especulativos globais e se reprimarizassem substancialmente a economia global.

O modelo econômico funcionou e inclusive gozou de amplo apoio popular, milagre econômico diziam, enquanto durou o boom das commodities, indo abaixo toda a engrenagem das políticas sociais e econômicas correístas a partir da queda do preço do óleo cru em 2013.

É a partir de então, quando começam a se deteriorar certos serviços públicos, que a economia nacional se paralisa, o consumo interno cai e os indicadores de diminuição da pobreza e incremento da capacidade aquisitiva por parte dos trabalhadores passa a decair.

Em fevereiro de 2014, o governo do presidente Rafael Correa começaria a sentir o desgaste político de seu mandato, perdendo as eleições seccionais e as principais prefeituras do país para partidos de oposição. Os setores empresariais que em outro momento tinham sido beneficiados pelas políticas correístas, entendem ser hora de diminuir o gasto público, reduzir o volume do Estado e voltar a liberalizar a economia. Ante a nova falta de liquidez do Estado equatoriano, este deixou de ser funcional para seguir dinamizando a economia nacional, de modo que voltou a se colocar em questão a política de subsídios sociais.

O anterior significou incremento das mobilizações populares no conjunto do país e derivou em uma convocatória de greve/mobilização em agosto de 2015, de parte do movimento indígena e do sindicalismo não clientelista, que terminou vergonhosamente reprimida pelas forças de segurança do Estado.

O conflito entre Correa e Moreno

Em tais condições, e em meio a uma agressiva política de endividamento público que derivou na superação do volume atual de dívida externa, com sobras, dos níveis herdados da época neoliberal, o então mandatário equatoriano decidiu não se apresentar às eleições de 2017, mas deixou aberta a porta para uma nova postulação em 2021.

Estrategicamente, o correísmo considerou que era melhor outro mandatário a proceder as políticas econômicas de ajuste já inapelavelmente necessárias ao país, permitindo assim uma regeneração da imagem de Rafael Correa, que estrategicamente voltaria em 2021 para “salvar” o Equador dos programas de ajuste, frutos de um déficit bruto, galopante e insustentável. Assim, em dezembro de 2015, a bancada oficialista aprovou forçosamente uma reforma constitucional que permitia a reeleição do mandatário para o período imediatamente posterior a uma legislatura marcada pela crise econômica herdada da gestão de saída.

Ainda assim, a estratégia para a volta ao poder de Correa passava pela necessidade de seguir controlando o aparato de Estado durante o atual período, bloqueando qualquer possibilidade de fiscalização e auditorias internas que pudesse se fazer sobre um modelo de gestão pública altamente corrupto, que significou durante dez anos a submissão de todos os poderes e órgãos de controle do Estado pelo Executivo.

Isso implicou na necessidade de a Aliança PAIS ganhar em 2017, ficando a maior parte das instituições públicas em mãos de ex-funcionários de provada proximidade com o ex-presidente. A única figura com a qual a Aliança PAIS contava para ganhar tais eleições era Lenin Moreno, que por suas funções de enviado especial do Secretário Geral da ONU sobre a Incapacidade e Acessibilidade residia em Genebra desde 2014, o que implicava no fato de ter se mantido à margem da degradação correísta dos últimos anos. 

Devemos nos remeter mais atrás no passado histórico do Equador para encontrar um mandatário que depois de dez anos de gestão continuada do poder terminou seu período com certo respaldo político – apesar da decadência dos últimos anos – como era o caso de Rafael Correa. Apesar da polarização social criada ao redor de sua figura, Correa abandonou a poltrona presidencial ainda sob importante apoio social, fundamentalmente entre os setores populares, os quais reconheciam o impulso a projetos sociais de caráter assistencialista e o investimento realizado durante a última década no âmbito da infraestrutura e modernização do Estado. Ainda assim, foi uma grande concatenação acelerada de erros políticos estratégicos que fizeram com que o ex-mandatário perdesse a hegemonia política ainda mantida no país.

Com a chegada da nova administração de Lenin, o correísmo deixava em postos estratégicos grande parte de sua equipe anterior de gestão. Isso significava que mantinha o controle sobre enorme e desmedido aparato de propaganda governamental, articulado na década passada, tal como se fazia a respeito do controle sobre a produção – sobre a qual o Estado equatoriano tinha notável incidência durante os últimos dez anos – no altar das responsabilidades estabelecidas em torno da figura do vice-presidente da República, Jorge Glas, o principal homem de confiança de Rafael Correa no novo gabinete, que se mantinha como responsável da mudança de matriz produtiva e investimento em megaprojetos.

Mas ao tempo, o correísmo mantinha o controle também sobre a frente política do governo através de figuras como a primeira titular da Secretaria Nacional de Gestão Pública (Paola Pabón) e do conselheiro presidencial (Ricardo Patiño), o principal operador político dentro da Aliança PAIS durante a gestão anterior, tal como fazia a respeito da Assembleia Nacional – o legislativo equatoriano – através de seus operadores na bancada majoritária da Aliança PAIS.

Não contente, Rafael Correa controlava também, mediante o Conselho de Participação Cidadã e Controle Social, os órgãos de fiscalização e controle do aparato de Estado, cuja designação de responsável respondia integralmente a personalidades afinadas ao ex-presidente. Isso ocorreu em instituições como o Conselho Nacional Eleitoral, a Corte Constitucional, a Controladoria Geral do Estado, a Procuradoria Geral do Estado, o Tribunal Contencioso Eleitoral, o Conselho do Judiciário ou a Defensoria do Povo, entre outros.

Apesar das tensões entre Lenin Moreno e a ala dura correísta serem palpáveis, desde esse mesmo momento, da investidura do atual presidente da República, em 24 de maio passado, momento em que a nova administração descobriu o estado real das finanças públicas, foi a entrega da sede social da CONAIE – estrutura organizativa do movimento indígena e organização social mais importante do país – e o anúncio em julho passado dos primeiros indultos de líderes populares criminalizados durante o regime anterior que geraram reações desqualificadoras de Rafael Correa sobre seu sucessor.

A partir daí os operadores correístas localizados em funções de direção dos distintos meios públicos começam a articular uma campanha contra a imagem do presidente Moreno, aduzindo que o país voltava às políticas do passado e que se estava produzindo uma divisão de poderes com as elites oligárquicas, o que significou que a nova administração morenista nomeasse novos responsáveis em tais meios de comunicação e órgãos. Desta maneira, o ex-presidente Correa perdia o controle do imenso aparato de propaganda e comunicação cuja criação havia sido auspiciada por ele mesmo.

Um mês depois, em inícios de agosto e já com a água no pescoço pelas investigações judiciais que se faziam a respeito da trama da Odebrecht no Equador, o então vice-presidente Jorge Glas – que fora também o segundo mandatário durante a última fase da era Correa – emitia uma extensa carta pública contra o atual chefe de Estado, acusando-o de convergir com os setores politicamente mais reacionários do país. A ruptura de relações entre o presidente Moreno e Jorge Glas acarretou na inabilitação do cargo do segundo, o que trouxe a perda de controle por parte de Rafael Correa sobre o aparato produtivo e os investimentos nos megaprojetos implementados no país. Meses mais tarde e fruto de investigações judiciais anticorrupção, Jorge Glas terminaria ocupando uma cela na prisão número 4 de Quito e destituído do cargo. O correísmo perdia, portanto, também sua incidência no aparato produtivo.

Poucos dias depois do exabrupto vice-presidencial e em vias de solucionar este conflito, o presidente Moreno enviaria a Bruxelas – lugar de residência atual de Correa – os principais operadores políticos de governo, todos eles vinculados durante a gestão anterior do ex-mandatário, com o fim de reconduzir de forma amigável as relações com o ex-presidente. Para surpresa do Executivo, depois da volta a Quito da dita delegação, suas principais cabeças – Ricardo Patiño, Paola Pabón e Virgílio Hernandez – anunciavam em coletiva de imprensa a renúncia a seus cargos no Executivo. Desta maneira, Rafael Correa perdia o controle da frente política governamental.

Destruídos todos os canais de comunicação entre o correísmo e o governo morenista, o presidente Moreno anunciaria nos primeiros meses de outubro passado a convocação de uma Consulta Popular onde algumas perguntas tinham a ver com uma lógica de reforma institucional pós-caudilhista que levasse o país a um caminho de superação do regime anterior. Isso terminaria de dinamitar internamente o partido do governo. Os setores afins ao ex-mandatário determinaram a expulsão, de forma irregular, de Lenin Moreno da Aliança PAIS convocando sem legitimidade jurídica uma convenção nacional da organização política com escasso êxito de adesão. O fato anterior acarretou, depois de uma decisão do Tribunal Contencioso Eleitoral, na perda do correísmo do controle do próprio partido. 

O último episódio deste mar de desacertos correístas se deu já em janeiro do presente ano, quando Correa chamou à desfiliação seus seguidores de Aliança PAIS, o que implicou também na perda de controle do legislativo, ficando com apenas 29 parlamentares, enquanto os outros 45 se alinharam a Lenín Moreno.

Em suma, apesar de ser difícil encontrar um ex-presidente que depois de dez anos de gestão mantivesse o nível de apoio de Correa, também é difícil encontrar algum que tenha demonstrado tal capacidade para dilapidá-lo tão rapidamente.

Consulta e pós-consulta

Foi assim que se chegou a 4 de fevereiro, momento em que o correísmo saboreou pela primeira vez uma derrota eleitoral. No fundo, assistimos algo que foi mais além da realização política de uma realidade indiscutível no Equador: o correísmo nunca construiu uma força social e política afim, mas utilizou o aparato de Estado operando sob lógicas clientelistas em favor de um partido de governo e da construção da imagem midiática de Rafael Correa como um grande caudilho populista. Isso implicou em que, após o abandono da cadeira presidencial e da recusa de seus caprichos nas instituições do Estado, seu apoio político diminuísse notavelmente.

A sociedade equatoriana votou pela conformação de um regime de transição que permitia superar a herança implantada pelo governo anterior, gerando as condições para a construção de um novo cenário político após o fim da hegemonia correísta. Foi cortado o cordão umbilical que vinculava o novo governo ao anterior, o que desabilita a narrativa correísta de que Lenin Moreno ocupa a presidência do país graças ao endosso de votos derivado da figura de Rafael Correa.

Após a consulta o país entra em uma nova fase política. Por um lado, o presidente Lenin Moreno ganhou momentaneamente sua disputa com o antecessor, apesar de Correa ainda manter um terço do eleitorado equatoriano. Correa e seus seguidores, após a desfiliação da Aliança PAIS, estão obrigados a conformar um novo movimento político nacional, apesar de a popularidade de seu líder estar em decadência. Correa, consciente de que o setor de antigos líderes da Aliança PAIS que o acompanham nesta nova aventura acrescentam realmente pouco, dada a má imagem diante da sociedade, está obrigado a liderar pessoalmente a construção do novo partido. Será uma tarefa urgente e nada fácil para o neocorreísmo criar uma nova figura política que tenha chances de disputar a presidência da República em 2021.

Por sua parte, a vontade de tal tendência é ocupar o espaço político da esquerda equatoriana, algo que já fizeram em 2006, apesar dos desencontros entre seu discurso e sua prática. Conseguir tal objetivo passa por bloquear qualquer possibilidade de construção de alternativas políticas no campo popular, algo urgentemente necessário para um país que sofre de uma esquerda cujo discurso político se encontra sem capacidade de sintonia com a sociedade, onde não existe geração de novas lideranças, e que se vê carente de construir uma proposta convincente para um novo modelo de sociedade e país.

Apesar de ser certo que a esquerda política e social equatoriana foi fracionada, em muitos casos cooptada e até perseguida pelo regime correísta durante os últimos dez anos, também é certo que existe uma incapacidade política por parte de sua endogâmica dirigência para se reinventar e reposicionar, com um discurso adaptado ao momento atual do país. O mero fato de que grande parte de tal esquerda apoiou em sua lógica anticorreísta a candidatura do conservador Guillermo Lasso no segundo turno das últimas eleições presidenciais é uma demonstração palpável de sua desorientação política e descrédito do que atualmente gozam na cidadania equatoriana. Nas fileiras conservadoras, as forças políticas que até o momento decidiram não fazer oposição política contumaz ao atual governo mudaram de atitude.

A proximidade de eleições seccionais, daqui um ano, faz as organizações políticas da direita voltarem a assumir protagonismo depois de uma aliança antinatural que permitiu a sensibilidades ideológicas muito diferentes um pacto de não agressão em troca de trabalharem, todos juntos, pelo Sim nesta consulta, em nome da finalidade de enterrar politicamente o correísmo. 

Meios de comunicação, setores empresariais e forças políticas conservadoras já anunciaram mudanças sobre sua ação diante do governo de Lenín Moreno, o que significará o aumento da pressão política e possivelmente de manifestações de rua, no sentido de que o governo adote posições mais reacionárias fundamentalmente no âmbito da política econômica.

Em todo caso, os setores da direita se mantêm divididos, existindo duas cabeças, até agora politicamente enfrentadas, que respondem a grupos de interesses diferentes. Tanto Guillermo Lasso, de forma aberta, como Jaime Nebot, de maneira mais sutil, aspiram à presidência da República no ano de 2021 ou até antes, se forem capazes de forçar o fim antecipado do mandato morenista, um governo sobre o qual visualizam debilidades não existentes no anterior.

Portanto, o governo nacional enfrenta uma situação inédita a partir de agora, a qual consistirá em receber de forma indiscriminada ataques tanto da direita – inclusive meios de comunicação privados e lobbies empresariais como nesta pretendida nova esquerda correísta. Que Lenín Moreno e sua equipe de gestão sejam capazes de fazer frente a tais pressões está por ser visto. De todo modo, a estratégia de um e outro lado já começou, em alguns casos até com apoio internacional, tal como no caso de Correa, que em breve disporá da plataforma televisiva Russian Today (RT), um meio de comunicação sensacionalista a serviço do aparato de propaganda de Vladimir Putin, como ferramenta de ataque ao atual governo.
Em 4 de fevereiro o povo equatoriano decidiu terminar com a hegemonia correísta que dominou o país nos últimos 11 anos. Dois de cada três cidadãos votaram a favor das perguntas da Consulta Popular impulsionada pelo Governo Nacional, em uma lógica de disputa auspiciada pelo ex-mandatário Rafael Correa, produzindo-se pela primeira vez na história uma rejeição cidadã majoritária aos seus postulados políticos. Até então – mediante consultas populares, plebiscitos, referendos – o ex-presidente Correa havia chegado a acumular em apenas dez anos doze vitórias consecutivas nas urnas.

Das sete perguntas impulsionadas pelo Executivo, as três primeiras tinham relação direta com o correísmo, abordando temas como:

•    A supressão de direitos políticos de condenados por corrupção, o que afeta a um número cada vez maior de altos funcionários que formaram parte do núcleo de poder do regime anterior – já há uma dezena de ex-ministros correístas que se encontram imputados em diferentes processos e este número aumentará – e que poderia terminar afetando o próprio Rafael Correa.

•    A eliminação da emenda constitucional aprovada na última fase do governo anterior, pela qual implementava a reeleição indefinida nos cargos de gestão pública a partir de 2021, e que permitia a Correa voltar a se apresentar, tal como era sua intenção, no próximo pleito presidencial;

•    E a recomposição do Conselho de Participação Cidadã e Controle Social – popularmente conhecido como o quinto poder constitucional – cujos membros designavam parte dos titulares das instituições do país, o que permitiu ao aparato correísta seguir controlando a estrutura do Estado, apesar de o ex-presidente não ocupar mais o cargo máximo.

O que foi o correísmo?

Compreender a situação atual do Equador significa entender o que foi isso que se convencionou chamar de correísmo e porque deixou de ser funcional neste momento para as elites equatorianas.

Desde 1997, a partir do governo de Abdalá Bucaram, o Equador inaugurou uma etapa de crise institucional permanente que fez com que nenhum presidente eleito desde então nas urnas conseguisse terminar o mandato.

Evidentemente, isso gerava grande instabilidade política e se tornou um fator de desequilíbrio importante a respeito de uma política de investimentos que se faziam cada vez mais urgentes e necessárias para a modernização capitalista que o país deveria empreender após a crise financeira de 1999 e 2000.

Com a entrada do presente século, a economia mundial se estabilizou, superando várias e importantes crises sofridas em diversos países do mundo – México e Venezuela (1994), Tailândia, Indonésia, Filipinas, Taiwan, Coreia do Sul (1997), Rússia (1998), Brasil (1999) ou Argentina (2001) – o que permitiu a melhora econômica internacional, com taxas de crescimento de 4% a 6% no começo da década, até a chegada da crise financeira global de 2008.

Da mesma forma, desde 2003 os preços das commodities aumentaram pelos efeitos dos furacões, como o Katrina, em instalações petroleiras; o crescimento na economia; e, particularmente, pelo auge da indústria da construção, que terminou em uma bolha especulativa cuja explosão fez os investidores voltarem suas pautas a mercados especulativos, tais como de ouro e petróleo, causando uma superdemanda artificial, o que fez o preço do óleo cru chegar ao seu ápice de 147,27 dólares o barril, em julho de 2008.

Neste contexto, o óleo cru equatoriano, que depende da cotização do petróleo norte-americano West Texas Intermediate (WTI) – que é o parâmetro de óleo cru nos EUA - e basicamente é vendido tanto pela PetroEcuador como pelas companhias privadas estrangeiras do país, também elevou notavelmente seus preços.

Sendo um país economicamente dependente de tal produto, o crescimento médio do PIB equatoriano durante a primeira década do presente século foi de 4,4%, enquanto durante os dez anos anteriores tal indicador não superou 1,8%. O anterior indica que a partir do ano 2000, a economia equatoriana começou a consolidar em grande medida apoiada pelas condições favoráveis – preço do petróleo e remessas provenientes dos migrantes – gerando-se as condições adequadas para uma modernização tardia do sistema capitalista nacional.

Neste contexto, o setor mais dinâmico do capital nacional entendeu que poderia melhorar suas possibilidades de negócio propiciando um maior nível de consumo nos mercados internos através de certa divisão do excedente petroleiro – não da distribuição da riqueza que continua em mãos de poucos – e a incorporação ao mercado de setores populares mediante o endividamento familiar e financeirização popular (democratização do consumo com base em empréstimos do setor financeiro privado). Este é o papel que fundamentalmente desempenhou o governo de Rafael Correa durante o último período de bonança econômica no Equador. 

Ao largo da primeira década do presente século, a maior fatia de participação no PIB da economia nacional foi o consumo privado, o qual representou uma média de 66,6% do PIB, convertendo-se em fator de maior contribuição ao crescimento nacional durante o período prévio à queda de preços do petróleo.

A dinamização da economia nacional tendo como motor o Estado, eixo da política econômica correísta, significou que os setores empresariais e financeiros foram os principais beneficiados em uma ação que carecia de riscos para os investimentos privados, pois se fazia base do erário público.

O respeito demonstrado pelo governo correísta à matriz de acumulação herdada da era neoliberal acarretou na inexistência da mais mínima transformação de caráter estrutural sobre os pilares que fundamentam os eixos constitutivos do poder no Equador; isso, apesar de setores historicamente esquecidos poderem se beneficiar durante o período de bonança de certas políticas assistencialistas, baseadas na transferência do excedente derivado de aprofundamento das políticas extrativistas. De quebra, significou que enquanto se ancorava em um propagandístico discurso soberanista, no interior do país se piorava cada vez mais a dependência econômica internacional dos mercados especulativos globais e se reprimarizassem substancialmente a economia global.

O modelo econômico funcionou e inclusive gozou de amplo apoio popular, milagre econômico diziam, enquanto durou o boom das commodities, indo abaixo toda a engrenagem das políticas sociais e econômicas correístas a partir da queda do preço do óleo cru em 2013.

É a partir de então, quando começam a se deteriorar certos serviços públicos, que a economia nacional se paralisa, o consumo interno cai e os indicadores de diminuição da pobreza e incremento da capacidade aquisitiva por parte dos trabalhadores passa a decair.

Em fevereiro de 2014, o governo do presidente Rafael Correa começaria a sentir o desgaste político de seu mandato, perdendo as eleições seccionais e as principais prefeituras do país para partidos de oposição. Os setores empresariais que em outro momento tinham sido beneficiados pelas políticas correístas, entendem ser hora de diminuir o gasto público, reduzir o volume do Estado e voltar a liberalizar a economia. Ante a nova falta de liquidez do Estado equatoriano, este deixou de ser funcional para seguir dinamizando a economia nacional, de modo que voltou a se colocar em questão a política de subsídios sociais.

O anterior significou incremento das mobilizações populares no conjunto do país e derivou em uma convocatória de greve/mobilização em agosto de 2015, de parte do movimento indígena e do sindicalismo não clientelista, que terminou vergonhosamente reprimida pelas forças de segurança do Estado.

O conflito entre Correa e Moreno

Em tais condições, e em meio a uma agressiva política de endividamento público que derivou na superação do volume atual de dívida externa, com sobras, dos níveis herdados da época neoliberal, o então mandatário equatoriano decidiu não se apresentar às eleições de 2017, mas deixou aberta a porta para uma nova postulação em 2021.

Estrategicamente, o correísmo considerou que era melhor outro mandatário a proceder as políticas econômicas de ajuste já inapelavelmente necessárias ao país, permitindo assim uma regeneração da imagem de Rafael Correa, que estrategicamente voltaria em 2021 para “salvar” o Equador dos programas de ajuste, frutos de um déficit bruto, galopante e insustentável. Assim, em dezembro de 2015, a bancada oficialista aprovou forçosamente uma reforma constitucional que permitia a reeleição do mandatário para o período imediatamente posterior a uma legislatura marcada pela crise econômica herdada da gestão de saída.

Ainda assim, a estratégia para a volta ao poder de Correa passava pela necessidade de seguir controlando o aparato de Estado durante o atual período, bloqueando qualquer possibilidade de fiscalização e auditorias internas que pudesse se fazer sobre um modelo de gestão pública altamente corrupto, que significou durante dez anos a submissão de todos os poderes e órgãos de controle do Estado pelo Executivo.

Isso implicou na necessidade de a Aliança PAIS ganhar em 2017, ficando a maior parte das instituições públicas em mãos de ex-funcionários de provada proximidade com o ex-presidente. A única figura com a qual a Aliança PAIS contava para ganhar tais eleições era Lenin Moreno, que por suas funções de enviado especial do Secretário Geral da ONU sobre a Incapacidade e Acessibilidade residia em Genebra desde 2014, o que implicava no fato de ter se mantido à margem da degradação correísta dos últimos anos. 

Devemos nos remeter mais atrás no passado histórico do Equador para encontrar um mandatário que depois de dez anos de gestão continuada do poder terminou seu período com certo respaldo político – apesar da decadência dos últimos anos – como era o caso de Rafael Correa. Apesar da polarização social criada ao redor de sua figura, Correa abandonou a poltrona presidencial ainda sob importante apoio social, fundamentalmente entre os setores populares, os quais reconheciam o impulso a projetos sociais de caráter assistencialista e o investimento realizado durante a última década no âmbito da infraestrutura e modernização do Estado. Ainda assim, foi uma grande concatenação acelerada de erros políticos estratégicos que fizeram com que o ex-mandatário perdesse a hegemonia política ainda mantida no país.

Com a chegada da nova administração de Lenin, o correísmo deixava em postos estratégicos grande parte de sua equipe anterior de gestão. Isso significava que mantinha o controle sobre enorme e desmedido aparato de propaganda governamental, articulado na década passada, tal como se fazia a respeito do controle sobre a produção – sobre a qual o Estado equatoriano tinha notável incidência durante os últimos dez anos – no altar das responsabilidades estabelecidas em torno da figura do vice-presidente da República, Jorge Glas, o principal homem de confiança de Rafael Correa no novo gabinete, que se mantinha como responsável da mudança de matriz produtiva e investimento em megaprojetos.

Mas ao tempo, o correísmo mantinha o controle também sobre a frente política do governo através de figuras como a primeira titular da Secretaria Nacional de Gestão Pública (Paola Pabón) e do conselheiro presidencial (Ricardo Patiño), o principal operador político dentro da Aliança PAIS durante a gestão anterior, tal como fazia a respeito da Assembleia Nacional – o legislativo equatoriano – através de seus operadores na bancada majoritária da Aliança PAIS.

Não contente, Rafael Correa controlava também, mediante o Conselho de Participação Cidadã e Controle Social, os órgãos de fiscalização e controle do aparato de Estado, cuja designação de responsável respondia integralmente a personalidades afinadas ao ex-presidente. Isso ocorreu em instituições como o Conselho Nacional Eleitoral, a Corte Constitucional, a Controladoria Geral do Estado, a Procuradoria Geral do Estado, o Tribunal Contencioso Eleitoral, o Conselho do Judiciário ou a Defensoria do Povo, entre outros.

Apesar das tensões entre Lenin Moreno e a ala dura correísta serem palpáveis, desde esse mesmo momento, da investidura do atual presidente da República, em 24 de maio passado, momento em que a nova administração descobriu o estado real das finanças públicas, foi a entrega da sede social da CONAIE – estrutura organizativa do movimento indígena e organização social mais importante do país – e o anúncio em julho passado dos primeiros indultos de líderes populares criminalizados durante o regime anterior que geraram reações desqualificadoras de Rafael Correa sobre seu sucessor.

A partir daí os operadores correístas localizados em funções de direção dos distintos meios públicos começam a articular uma campanha contra a imagem do presidente Moreno, aduzindo que o país voltava às políticas do passado e que se estava produzindo uma divisão de poderes com as elites oligárquicas, o que significou que a nova administração morenista nomeasse novos responsáveis em tais meios de comunicação e órgãos. Desta maneira, o ex-presidente Correa perdia o controle do imenso aparato de propaganda e comunicação cuja criação havia sido auspiciada por ele mesmo.

Um mês depois, em inícios de agosto e já com a água no pescoço pelas investigações judiciais que se faziam a respeito da trama da Odebrecht no Equador, o então vice-presidente Jorge Glas – que fora também o segundo mandatário durante a última fase da era Correa – emitia uma extensa carta pública contra o atual chefe de Estado, acusando-o de convergir com os setores politicamente mais reacionários do país. A ruptura de relações entre o presidente Moreno e Jorge Glas acarretou na inabilitação do cargo do segundo, o que trouxe a perda de controle por parte de Rafael Correa sobre o aparato produtivo e os investimentos nos megaprojetos implementados no país. Meses mais tarde e fruto de investigações judiciais anticorrupção, Jorge Glas terminaria ocupando uma cela na prisão número 4 de Quito e destituído do cargo. O correísmo perdia, portanto, também sua incidência no aparato produtivo.

Poucos dias depois do exabrupto vice-presidencial e em vias de solucionar este conflito, o presidente Moreno enviaria a Bruxelas – lugar de residência atual de Correa – os principais operadores políticos de governo, todos eles vinculados durante a gestão anterior do ex-mandatário, com o fim de reconduzir de forma amigável as relações com o ex-presidente. Para surpresa do Executivo, depois da volta a Quito da dita delegação, suas principais cabeças – Ricardo Patiño, Paola Pabón e Virgílio Hernandez – anunciavam em coletiva de imprensa a renúncia a seus cargos no Executivo. Desta maneira, Rafael Correa perdia o controle da frente política governamental.

Destruídos todos os canais de comunicação entre o correísmo e o governo morenista, o presidente Moreno anunciaria nos primeiros meses de outubro passado a convocação de uma Consulta Popular onde algumas perguntas tinham a ver com uma lógica de reforma institucional pós-caudilhista que levasse o país a um caminho de superação do regime anterior. Isso terminaria de dinamitar internamente o partido do governo. Os setores afins ao ex-mandatário determinaram a expulsão, de forma irregular, de Lenin Moreno da Aliança PAIS convocando sem legitimidade jurídica uma convenção nacional da organização política com escasso êxito de adesão. O fato anterior acarretou, depois de uma decisão do Tribunal Contencioso Eleitoral, na perda do correísmo do controle do próprio partido. 

O último episódio deste mar de desacertos correístas se deu já em janeiro do presente ano, quando Correa chamou à desfiliação seus seguidores de Aliança PAIS, o que implicou também na perda de controle do legislativo, ficando com apenas 29 parlamentares, enquanto os outros 45 se alinharam a Lenín Moreno.

Em suma, apesar de ser difícil encontrar um ex-presidente que depois de dez anos de gestão mantivesse o nível de apoio de Correa, também é difícil encontrar algum que tenha demonstrado tal capacidade para dilapidá-lo tão rapidamente.

Consulta e pós-consulta

Foi assim que se chegou a 4 de fevereiro, momento em que o correísmo saboreou pela primeira vez uma derrota eleitoral. No fundo, assistimos algo que foi mais além da realização política de uma realidade indiscutível no Equador: o correísmo nunca construiu uma força social e política afim, mas utilizou o aparato de Estado operando sob lógicas clientelistas em favor de um partido de governo e da construção da imagem midiática de Rafael Correa como um grande caudilho populista. Isso implicou em que, após o abandono da cadeira presidencial e da recusa de seus caprichos nas instituições do Estado, seu apoio político diminuísse notavelmente.

A sociedade equatoriana votou pela conformação de um regime de transição que permitia superar a herança implantada pelo governo anterior, gerando as condições para a construção de um novo cenário político após o fim da hegemonia correísta. Foi cortado o cordão umbilical que vinculava o novo governo ao anterior, o que desabilita a narrativa correísta de que Lenin Moreno ocupa a presidência do país graças ao endosso de votos derivado da figura de Rafael Correa.

Após a consulta o país entra em uma nova fase política. Por um lado, o presidente Lenin Moreno ganhou momentaneamente sua disputa com o antecessor, apesar de Correa ainda manter um terço do eleitorado equatoriano. Correa e seus seguidores, após a desfiliação da Aliança PAIS, estão obrigados a conformar um novo movimento político nacional, apesar de a popularidade de seu líder estar em decadência. Correa, consciente de que o setor de antigos líderes da Aliança PAIS que o acompanham nesta nova aventura acrescentam realmente pouco, dada a má imagem diante da sociedade, está obrigado a liderar pessoalmente a construção do novo partido. Será uma tarefa urgente e nada fácil para o neocorreísmo criar uma nova figura política que tenha chances de disputar a presidência da República em 2021.

Por sua parte, a vontade de tal tendência é ocupar o espaço político da esquerda equatoriana, algo que já fizeram em 2006, apesar dos desencontros entre seu discurso e sua prática. Conseguir tal objetivo passa por bloquear qualquer possibilidade de construção de alternativas políticas no campo popular, algo urgentemente necessário para um país que sofre de uma esquerda cujo discurso político se encontra sem capacidade de sintonia com a sociedade, onde não existe geração de novas lideranças, e que se vê carente de construir uma proposta convincente para um novo modelo de sociedade e país.

Apesar de ser certo que a esquerda política e social equatoriana foi fracionada, em muitos casos cooptada e até perseguida pelo regime correísta durante os últimos dez anos, também é certo que existe uma incapacidade política por parte de sua endogâmica dirigência para se reinventar e reposicionar, com um discurso adaptado ao momento atual do país. O mero fato de que grande parte de tal esquerda apoiou em sua lógica anticorreísta a candidatura do conservador Guillermo Lasso no segundo turno das últimas eleições presidenciais é uma demonstração palpável de sua desorientação política e descrédito do que atualmente gozam na cidadania equatoriana. Nas fileiras conservadoras, as forças políticas que até o momento decidiram não fazer oposição política contumaz ao atual governo mudaram de atitude.

A proximidade de eleições seccionais, daqui um ano, faz as organizações políticas da direita voltarem a assumir protagonismo depois de uma aliança antinatural que permitiu a sensibilidades ideológicas muito diferentes um pacto de não agressão em troca de trabalharem, todos juntos, pelo Sim nesta consulta, em nome da finalidade de enterrar politicamente o correísmo. 

Meios de comunicação, setores empresariais e forças políticas conservadoras já anunciaram mudanças sobre sua ação diante do governo de Lenín Moreno, o que significará o aumento da pressão política e possivelmente de manifestações de rua, no sentido de que o governo adote posições mais reacionárias fundamentalmente no âmbito da política econômica.

Em todo caso, os setores da direita se mantêm divididos, existindo duas cabeças, até agora politicamente enfrentadas, que respondem a grupos de interesses diferentes. Tanto Guillermo Lasso, de forma aberta, como Jaime Nebot, de maneira mais sutil, aspiram à presidência da República no ano de 2021 ou até antes, se forem capazes de forçar o fim antecipado do mandato morenista, um governo sobre o qual visualizam debilidades não existentes no anterior.

Portanto, o governo nacional enfrenta uma situação inédita a partir de agora, a qual consistirá em receber de forma indiscriminada ataques tanto da direita – inclusive meios de comunicação privados e lobbies empresariais como nesta pretendida nova esquerda correísta. Que Lenín Moreno e sua equipe de gestão sejam capazes de fazer frente a tais pressões está por ser visto. De todo modo, a estratégia de um e outro lado já começou, em alguns casos até com apoio internacional, tal como no caso de Correa, que em breve disporá da plataforma televisiva Russian Today (RT), um meio de comunicação sensacionalista a serviço do aparato de propaganda de Vladimir Putin, como ferramenta de ataque ao atual governo.
Em 4 de fevereiro o povo equatoriano decidiu terminar com a hegemonia correísta que dominou o país nos últimos 11 anos. Dois de cada três cidadãos votaram a favor das perguntas da Consulta Popular impulsionada pelo Governo Nacional, em uma lógica de disputa auspiciada pelo ex-mandatário Rafael Correa, produzindo-se pela primeira vez na história uma rejeição cidadã majoritária aos seus postulados políticos. Até então – mediante consultas populares, plebiscitos, referendos – o ex-presidente Correa havia chegado a acumular em apenas dez anos doze vitórias consecutivas nas urnas.

Das sete perguntas impulsionadas pelo Executivo, as três primeiras tinham relação direta com o correísmo, abordando temas como:

•    A supressão de direitos políticos de condenados por corrupção, o que afeta a um número cada vez maior de altos funcionários que formaram parte do núcleo de poder do regime anterior – já há uma dezena de ex-ministros correístas que se encontram imputados em diferentes processos e este número aumentará – e que poderia terminar afetando o próprio Rafael Correa.

•    A eliminação da emenda constitucional aprovada na última fase do governo anterior, pela qual implementava a reeleição indefinida nos cargos de gestão pública a partir de 2021, e que permitia a Correa voltar a se apresentar, tal como era sua intenção, no próximo pleito presidencial;

•    E a recomposição do Conselho de Participação Cidadã e Controle Social – popularmente conhecido como o quinto poder constitucional – cujos membros designavam parte dos titulares das instituições do país, o que permitiu ao aparato correísta seguir controlando a estrutura do Estado, apesar de o ex-presidente não ocupar mais o cargo máximo.

O que foi o correísmo?

Compreender a situação atual do Equador significa entender o que foi isso que se convencionou chamar de correísmo e porque deixou de ser funcional neste momento para as elites equatorianas.

Desde 1997, a partir do governo de Abdalá Bucaram, o Equador inaugurou uma etapa de crise institucional permanente que fez com que nenhum presidente eleito desde então nas urnas conseguisse terminar o mandato.

Evidentemente, isso gerava grande instabilidade política e se tornou um fator de desequilíbrio importante a respeito de uma política de investimentos que se faziam cada vez mais urgentes e necessárias para a modernização capitalista que o país deveria empreender após a crise financeira de 1999 e 2000.

Com a entrada do presente século, a economia mundial se estabilizou, superando várias e importantes crises sofridas em diversos países do mundo – México e Venezuela (1994), Tailândia, Indonésia, Filipinas, Taiwan, Coreia do Sul (1997), Rússia (1998), Brasil (1999) ou Argentina (2001) – o que permitiu a melhora econômica internacional, com taxas de crescimento de 4% a 6% no começo da década, até a chegada da crise financeira global de 2008.

Da mesma forma, desde 2003 os preços das commodities aumentaram pelos efeitos dos furacões, como o Katrina, em instalações petroleiras; o crescimento na economia; e, particularmente, pelo auge da indústria da construção, que terminou em uma bolha especulativa cuja explosão fez os investidores voltarem suas pautas a mercados especulativos, tais como de ouro e petróleo, causando uma superdemanda artificial, o que fez o preço do óleo cru chegar ao seu ápice de 147,27 dólares o barril, em julho de 2008.

Neste contexto, o óleo cru equatoriano, que depende da cotização do petróleo norte-americano West Texas Intermediate (WTI) – que é o parâmetro de óleo cru nos EUA - e basicamente é vendido tanto pela PetroEcuador como pelas companhias privadas estrangeiras do país, também elevou notavelmente seus preços.

Sendo um país economicamente dependente de tal produto, o crescimento médio do PIB equatoriano durante a primeira década do presente século foi de 4,4%, enquanto durante os dez anos anteriores tal indicador não superou 1,8%. O anterior indica que a partir do ano 2000, a economia equatoriana começou a consolidar em grande medida apoiada pelas condições favoráveis – preço do petróleo e remessas provenientes dos migrantes – gerando-se as condições adequadas para uma modernização tardia do sistema capitalista nacional.

Neste contexto, o setor mais dinâmico do capital nacional entendeu que poderia melhorar suas possibilidades de negócio propiciando um maior nível de consumo nos mercados internos através de certa divisão do excedente petroleiro – não da distribuição da riqueza que continua em mãos de poucos – e a incorporação ao mercado de setores populares mediante o endividamento familiar e financeirização popular (democratização do consumo com base em empréstimos do setor financeiro privado). Este é o papel que fundamentalmente desempenhou o governo de Rafael Correa durante o último período de bonança econômica no Equador. 

Ao largo da primeira década do presente século, a maior fatia de participação no PIB da economia nacional foi o consumo privado, o qual representou uma média de 66,6% do PIB, convertendo-se em fator de maior contribuição ao crescimento nacional durante o período prévio à queda de preços do petróleo.

A dinamização da economia nacional tendo como motor o Estado, eixo da política econômica correísta, significou que os setores empresariais e financeiros foram os principais beneficiados em uma ação que carecia de riscos para os investimentos privados, pois se fazia base do erário público.

O respeito demonstrado pelo governo correísta à matriz de acumulação herdada da era neoliberal acarretou na inexistência da mais mínima transformação de caráter estrutural sobre os pilares que fundamentam os eixos constitutivos do poder no Equador; isso, apesar de setores historicamente esquecidos poderem se beneficiar durante o período de bonança de certas políticas assistencialistas, baseadas na transferência do excedente derivado de aprofundamento das políticas extrativistas. De quebra, significou que enquanto se ancorava em um propagandístico discurso soberanista, no interior do país se piorava cada vez mais a dependência econômica internacional dos mercados especulativos globais e se reprimarizassem substancialmente a economia global.

O modelo econômico funcionou e inclusive gozou de amplo apoio popular, milagre econômico diziam, enquanto durou o boom das commodities, indo abaixo toda a engrenagem das políticas sociais e econômicas correístas a partir da queda do preço do óleo cru em 2013.

É a partir de então, quando começam a se deteriorar certos serviços públicos, que a economia nacional se paralisa, o consumo interno cai e os indicadores de diminuição da pobreza e incremento da capacidade aquisitiva por parte dos trabalhadores passa a decair.

Em fevereiro de 2014, o governo do presidente Rafael Correa começaria a sentir o desgaste político de seu mandato, perdendo as eleições seccionais e as principais prefeituras do país para partidos de oposição. Os setores empresariais que em outro momento tinham sido beneficiados pelas políticas correístas, entendem ser hora de diminuir o gasto público, reduzir o volume do Estado e voltar a liberalizar a economia. Ante a nova falta de liquidez do Estado equatoriano, este deixou de ser funcional para seguir dinamizando a economia nacional, de modo que voltou a se colocar em questão a política de subsídios sociais.

O anterior significou incremento das mobilizações populares no conjunto do país e derivou em uma convocatória de greve/mobilização em agosto de 2015, de parte do movimento indígena e do sindicalismo não clientelista, que terminou vergonhosamente reprimida pelas forças de segurança do Estado.

O conflito entre Correa e Moreno

Em tais condições, e em meio a uma agressiva política de endividamento público que derivou na superação do volume atual de dívida externa, com sobras, dos níveis herdados da época neoliberal, o então mandatário equatoriano decidiu não se apresentar às eleições de 2017, mas deixou aberta a porta para uma nova postulação em 2021.

Estrategicamente, o correísmo considerou que era melhor outro mandatário a proceder as políticas econômicas de ajuste já inapelavelmente necessárias ao país, permitindo assim uma regeneração da imagem de Rafael Correa, que estrategicamente voltaria em 2021 para “salvar” o Equador dos programas de ajuste, frutos de um déficit bruto, galopante e insustentável. Assim, em dezembro de 2015, a bancada oficialista aprovou forçosamente uma reforma constitucional que permitia a reeleição do mandatário para o período imediatamente posterior a uma legislatura marcada pela crise econômica herdada da gestão de saída.

Ainda assim, a estratégia para a volta ao poder de Correa passava pela necessidade de seguir controlando o aparato de Estado durante o atual período, bloqueando qualquer possibilidade de fiscalização e auditorias internas que pudesse se fazer sobre um modelo de gestão pública altamente corrupto, que significou durante dez anos a submissão de todos os poderes e órgãos de controle do Estado pelo Executivo.

Isso implicou na necessidade de a Aliança PAIS ganhar em 2017, ficando a maior parte das instituições públicas em mãos de ex-funcionários de provada proximidade com o ex-presidente. A única figura com a qual a Aliança PAIS contava para ganhar tais eleições era Lenin Moreno, que por suas funções de enviado especial do Secretário Geral da ONU sobre a Incapacidade e Acessibilidade residia em Genebra desde 2014, o que implicava no fato de ter se mantido à margem da degradação correísta dos últimos anos. 

Devemos nos remeter mais atrás no passado histórico do Equador para encontrar um mandatário que depois de dez anos de gestão continuada do poder terminou seu período com certo respaldo político – apesar da decadência dos últimos anos – como era o caso de Rafael Correa. Apesar da polarização social criada ao redor de sua figura, Correa abandonou a poltrona presidencial ainda sob importante apoio social, fundamentalmente entre os setores populares, os quais reconheciam o impulso a projetos sociais de caráter assistencialista e o investimento realizado durante a última década no âmbito da infraestrutura e modernização do Estado. Ainda assim, foi uma grande concatenação acelerada de erros políticos estratégicos que fizeram com que o ex-mandatário perdesse a hegemonia política ainda mantida no país.

Com a chegada da nova administração de Lenin, o correísmo deixava em postos estratégicos grande parte de sua equipe anterior de gestão. Isso significava que mantinha o controle sobre enorme e desmedido aparato de propaganda governamental, articulado na década passada, tal como se fazia a respeito do controle sobre a produção – sobre a qual o Estado equatoriano tinha notável incidência durante os últimos dez anos – no altar das responsabilidades estabelecidas em torno da figura do vice-presidente da República, Jorge Glas, o principal homem de confiança de Rafael Correa no novo gabinete, que se mantinha como responsável da mudança de matriz produtiva e investimento em megaprojetos.

Mas ao tempo, o correísmo mantinha o controle também sobre a frente política do governo através de figuras como a primeira titular da Secretaria Nacional de Gestão Pública (Paola Pabón) e do conselheiro presidencial (Ricardo Patiño), o principal operador político dentro da Aliança PAIS durante a gestão anterior, tal como fazia a respeito da Assembleia Nacional – o legislativo equatoriano – através de seus operadores na bancada majoritária da Aliança PAIS.

Não contente, Rafael Correa controlava também, mediante o Conselho de Participação Cidadã e Controle Social, os órgãos de fiscalização e controle do aparato de Estado, cuja designação de responsável respondia integralmente a personalidades afinadas ao ex-presidente. Isso ocorreu em instituições como o Conselho Nacional Eleitoral, a Corte Constitucional, a Controladoria Geral do Estado, a Procuradoria Geral do Estado, o Tribunal Contencioso Eleitoral, o Conselho do Judiciário ou a Defensoria do Povo, entre outros.

Apesar das tensões entre Lenin Moreno e a ala dura correísta serem palpáveis, desde esse mesmo momento, da investidura do atual presidente da República, em 24 de maio passado, momento em que a nova administração descobriu o estado real das finanças públicas, foi a entrega da sede social da CONAIE – estrutura organizativa do movimento indígena e organização social mais importante do país – e o anúncio em julho passado dos primeiros indultos de líderes populares criminalizados durante o regime anterior que geraram reações desqualificadoras de Rafael Correa sobre seu sucessor.

A partir daí os operadores correístas localizados em funções de direção dos distintos meios públicos começam a articular uma campanha contra a imagem do presidente Moreno, aduzindo que o país voltava às políticas do passado e que se estava produzindo uma divisão de poderes com as elites oligárquicas, o que significou que a nova administração morenista nomeasse novos responsáveis em tais meios de comunicação e órgãos. Desta maneira, o ex-presidente Correa perdia o controle do imenso aparato de propaganda e comunicação cuja criação havia sido auspiciada por ele mesmo.

Um mês depois, em inícios de agosto e já com a água no pescoço pelas investigações judiciais que se faziam a respeito da trama da Odebrecht no Equador, o então vice-presidente Jorge Glas – que fora também o segundo mandatário durante a última fase da era Correa – emitia uma extensa carta pública contra o atual chefe de Estado, acusando-o de convergir com os setores politicamente mais reacionários do país. A ruptura de relações entre o presidente Moreno e Jorge Glas acarretou na inabilitação do cargo do segundo, o que trouxe a perda de controle por parte de Rafael Correa sobre o aparato produtivo e os investimentos nos megaprojetos implementados no país. Meses mais tarde e fruto de investigações judiciais anticorrupção, Jorge Glas terminaria ocupando uma cela na prisão número 4 de Quito e destituído do cargo. O correísmo perdia, portanto, também sua incidência no aparato produtivo.

Poucos dias depois do exabrupto vice-presidencial e em vias de solucionar este conflito, o presidente Moreno enviaria a Bruxelas – lugar de residência atual de Correa – os principais operadores políticos de governo, todos eles vinculados durante a gestão anterior do ex-mandatário, com o fim de reconduzir de forma amigável as relações com o ex-presidente. Para surpresa do Executivo, depois da volta a Quito da dita delegação, suas principais cabeças – Ricardo Patiño, Paola Pabón e Virgílio Hernandez – anunciavam em coletiva de imprensa a renúncia a seus cargos no Executivo. Desta maneira, Rafael Correa perdia o controle da frente política governamental.

Destruídos todos os canais de comunicação entre o correísmo e o governo morenista, o presidente Moreno anunciaria nos primeiros meses de outubro passado a convocação de uma Consulta Popular onde algumas perguntas tinham a ver com uma lógica de reforma institucional pós-caudilhista que levasse o país a um caminho de superação do regime anterior. Isso terminaria de dinamitar internamente o partido do governo. Os setores afins ao ex-mandatário determinaram a expulsão, de forma irregular, de Lenin Moreno da Aliança PAIS convocando sem legitimidade jurídica uma convenção nacional da organização política com escasso êxito de adesão. O fato anterior acarretou, depois de uma decisão do Tribunal Contencioso Eleitoral, na perda do correísmo do controle do próprio partido. 

O último episódio deste mar de desacertos correístas se deu já em janeiro do presente ano, quando Correa chamou à desfiliação seus seguidores de Aliança PAIS, o que implicou também na perda de controle do legislativo, ficando com apenas 29 parlamentares, enquanto os outros 45 se alinharam a Lenín Moreno.

Em suma, apesar de ser difícil encontrar um ex-presidente que depois de dez anos de gestão mantivesse o nível de apoio de Correa, também é difícil encontrar algum que tenha demonstrado tal capacidade para dilapidá-lo tão rapidamente.

Consulta e pós-consulta

Foi assim que se chegou a 4 de fevereiro, momento em que o correísmo saboreou pela primeira vez uma derrota eleitoral. No fundo, assistimos algo que foi mais além da realização política de uma realidade indiscutível no Equador: o correísmo nunca construiu uma força social e política afim, mas utilizou o aparato de Estado operando sob lógicas clientelistas em favor de um partido de governo e da construção da imagem midiática de Rafael Correa como um grande caudilho populista. Isso implicou em que, após o abandono da cadeira presidencial e da recusa de seus caprichos nas instituições do Estado, seu apoio político diminuísse notavelmente.

A sociedade equatoriana votou pela conformação de um regime de transição que permitia superar a herança implantada pelo governo anterior, gerando as condições para a construção de um novo cenário político após o fim da hegemonia correísta. Foi cortado o cordão umbilical que vinculava o novo governo ao anterior, o que desabilita a narrativa correísta de que Lenin Moreno ocupa a presidência do país graças ao endosso de votos derivado da figura de Rafael Correa.

Após a consulta o país entra em uma nova fase política. Por um lado, o presidente Lenin Moreno ganhou momentaneamente sua disputa com o antecessor, apesar de Correa ainda manter um terço do eleitorado equatoriano. Correa e seus seguidores, após a desfiliação da Aliança PAIS, estão obrigados a conformar um novo movimento político nacional, apesar de a popularidade de seu líder estar em decadência. Correa, consciente de que o setor de antigos líderes da Aliança PAIS que o acompanham nesta nova aventura acrescentam realmente pouco, dada a má imagem diante da sociedade, está obrigado a liderar pessoalmente a construção do novo partido. Será uma tarefa urgente e nada fácil para o neocorreísmo criar uma nova figura política que tenha chances de disputar a presidência da República em 2021.

Por sua parte, a vontade de tal tendência é ocupar o espaço político da esquerda equatoriana, algo que já fizeram em 2006, apesar dos desencontros entre seu discurso e sua prática. Conseguir tal objetivo passa por bloquear qualquer possibilidade de construção de alternativas políticas no campo popular, algo urgentemente necessário para um país que sofre de uma esquerda cujo discurso político se encontra sem capacidade de sintonia com a sociedade, onde não existe geração de novas lideranças, e que se vê carente de construir uma proposta convincente para um novo modelo de sociedade e país.

Apesar de ser certo que a esquerda política e social equatoriana foi fracionada, em muitos casos cooptada e até perseguida pelo regime correísta durante os últimos dez anos, também é certo que existe uma incapacidade política por parte de sua endogâmica dirigência para se reinventar e reposicionar, com um discurso adaptado ao momento atual do país. O mero fato de que grande parte de tal esquerda apoiou em sua lógica anticorreísta a candidatura do conservador Guillermo Lasso no segundo turno das últimas eleições presidenciais é uma demonstração palpável de sua desorientação política e descrédito do que atualmente gozam na cidadania equatoriana. Nas fileiras conservadoras, as forças políticas que até o momento decidiram não fazer oposição política contumaz ao atual governo mudaram de atitude.

A proximidade de eleições seccionais, daqui um ano, faz as organizações políticas da direita voltarem a assumir protagonismo depois de uma aliança antinatural que permitiu a sensibilidades ideológicas muito diferentes um pacto de não agressão em troca de trabalharem, todos juntos, pelo Sim nesta consulta, em nome da finalidade de enterrar politicamente o correísmo. 

Meios de comunicação, setores empresariais e forças políticas conservadoras já anunciaram mudanças sobre sua ação diante do governo de Lenín Moreno, o que significará o aumento da pressão política e possivelmente de manifestações de rua, no sentido de que o governo adote posições mais reacionárias fundamentalmente no âmbito da política econômica.

Em todo caso, os setores da direita se mantêm divididos, existindo duas cabeças, até agora politicamente enfrentadas, que respondem a grupos de interesses diferentes. Tanto Guillermo Lasso, de forma aberta, como Jaime Nebot, de maneira mais sutil, aspiram à presidência da República no ano de 2021 ou até antes, se forem capazes de forçar o fim antecipado do mandato morenista, um governo sobre o qual visualizam debilidades não existentes no anterior.

Portanto, o governo nacional enfrenta uma situação inédita a partir de agora, a qual consistirá em receber de forma indiscriminada ataques tanto da direita – inclusive meios de comunicação privados e lobbies empresariais como nesta pretendida nova esquerda correísta. Que Lenín Moreno e sua equipe de gestão sejam capazes de fazer frente a tais pressões está por ser visto. De todo modo, a estratégia de um e outro lado já começou, em alguns casos até com apoio internacional, tal como no caso de Correa, que em breve disporá da plataforma televisiva Russian Today (RT), um meio de comunicação sensacionalista a serviço do aparato de propaganda de Vladimir Putin, como ferramenta de ataque ao atual governo.


Em 4 de fevereiro o povo equatoriano decidiu terminar com a hegemonia correísta que dominou o país nos últimos 11 anos. Dois de cada três cidadãos votaram a favor das perguntas da Consulta Popular impulsionada pelo Governo Nacional, em uma lógica de disputa auspiciada pelo ex-mandatário Rafael Correa, produzindo-se pela primeira vez na história uma rejeição cidadã majoritária aos seus postulados políticos. Até então – mediante consultas populares, plebiscitos, referendos – o ex-presidente Correa havia chegado a acumular em apenas dez anos doze vitórias consecutivas nas urnas.

Das sete perguntas impulsionadas pelo Executivo, as três primeiras tinham relação direta com o correísmo, abordando temas como:

•    A supressão de direitos políticos de condenados por corrupção, o que afeta a um número cada vez maior de altos funcionários que formaram parte do núcleo de poder do regime anterior – já há uma dezena de ex-ministros correístas que se encontram imputados em diferentes processos e este número aumentará – e que poderia terminar afetando o próprio Rafael Correa.

•    A eliminação da emenda constitucional aprovada na última fase do governo anterior, pela qual implementava a reeleição indefinida nos cargos de gestão pública a partir de 2021, e que permitia a Correa voltar a se apresentar, tal como era sua intenção, no próximo pleito presidencial;

•    E a recomposição do Conselho de Participação Cidadã e Controle Social – popularmente conhecido como o quinto poder constitucional – cujos membros designavam parte dos titulares das instituições do país, o que permitiu ao aparato correísta seguir controlando a estrutura do Estado, apesar de o ex-presidente não ocupar mais o cargo máximo.

O que foi o correísmo?

Compreender a situação atual do Equador significa entender o que foi isso que se convencionou chamar de correísmo e porque deixou de ser funcional neste momento para as elites equatorianas.

Desde 1997, a partir do governo de Abdalá Bucaram, o Equador inaugurou uma etapa de crise institucional permanente que fez com que nenhum presidente eleito desde então nas urnas conseguisse terminar o mandato.

Evidentemente, isso gerava grande instabilidade política e se tornou um fator de desequilíbrio importante a respeito de uma política de investimentos que se faziam cada vez mais urgentes e necessárias para a modernização capitalista que o país deveria empreender após a crise financeira de 1999 e 2000.

Com a entrada do presente século, a economia mundial se estabilizou, superando várias e importantes crises sofridas em diversos países do mundo – México e Venezuela (1994), Tailândia, Indonésia, Filipinas, Taiwan, Coreia do Sul (1997), Rússia (1998), Brasil (1999) ou Argentina (2001) – o que permitiu a melhora econômica internacional, com taxas de crescimento de 4% a 6% no começo da década, até a chegada da crise financeira global de 2008.

Da mesma forma, desde 2003 os preços das commodities aumentaram pelos efeitos dos furacões, como o Katrina, em instalações petroleiras; o crescimento na economia; e, particularmente, pelo auge da indústria da construção, que terminou em uma bolha especulativa cuja explosão fez os investidores voltarem suas pautas a mercados especulativos, tais como de ouro e petróleo, causando uma superdemanda artificial, o que fez o preço do óleo cru chegar ao seu ápice de 147,27 dólares o barril, em julho de 2008.

Neste contexto, o óleo cru equatoriano, que depende da cotização do petróleo norte-americano West Texas Intermediate (WTI) – que é o parâmetro de óleo cru nos EUA - e basicamente é vendido tanto pela PetroEcuador como pelas companhias privadas estrangeiras do país, também elevou notavelmente seus preços.

Sendo um país economicamente dependente de tal produto, o crescimento médio do PIB equatoriano durante a primeira década do presente século foi de 4,4%, enquanto durante os dez anos anteriores tal indicador não superou 1,8%. O anterior indica que a partir do ano 2000, a economia equatoriana começou a consolidar em grande medida apoiada pelas condições favoráveis – preço do petróleo e remessas provenientes dos migrantes – gerando-se as condições adequadas para uma modernização tardia do sistema capitalista nacional.

Neste contexto, o setor mais dinâmico do capital nacional entendeu que poderia melhorar suas possibilidades de negócio propiciando um maior nível de consumo nos mercados internos através de certa divisão do excedente petroleiro – não da distribuição da riqueza que continua em mãos de poucos – e a incorporação ao mercado de setores populares mediante o endividamento familiar e financeirização popular (democratização do consumo com base em empréstimos do setor financeiro privado). Este é o papel que fundamentalmente desempenhou o governo de Rafael Correa durante o último período de bonança econômica no Equador. 

Ao largo da primeira década do presente século, a maior fatia de participação no PIB da economia nacional foi o consumo privado, o qual representou uma média de 66,6% do PIB, convertendo-se em fator de maior contribuição ao crescimento nacional durante o período prévio à queda de preços do petróleo.

A dinamização da economia nacional tendo como motor o Estado, eixo da política econômica correísta, significou que os setores empresariais e financeiros foram os principais beneficiados em uma ação que carecia de riscos para os investimentos privados, pois se fazia base do erário público.

O respeito demonstrado pelo governo correísta à matriz de acumulação herdada da era neoliberal acarretou na inexistência da mais mínima transformação de caráter estrutural sobre os pilares que fundamentam os eixos constitutivos do poder no Equador; isso, apesar de setores historicamente esquecidos poderem se beneficiar durante o período de bonança de certas políticas assistencialistas, baseadas na transferência do excedente derivado de aprofundamento das políticas extrativistas. De quebra, significou que enquanto se ancorava em um propagandístico discurso soberanista, no interior do país se piorava cada vez mais a dependência econômica internacional dos mercados especulativos globais e se reprimarizassem substancialmente a economia global.

O modelo econômico funcionou e inclusive gozou de amplo apoio popular, milagre econômico diziam, enquanto durou o boom das commodities, indo abaixo toda a engrenagem das políticas sociais e econômicas correístas a partir da queda do preço do óleo cru em 2013.

É a partir de então, quando começam a se deteriorar certos serviços públicos, que a economia nacional se paralisa, o consumo interno cai e os indicadores de diminuição da pobreza e incremento da capacidade aquisitiva por parte dos trabalhadores passa a decair.

Em fevereiro de 2014, o governo do presidente Rafael Correa começaria a sentir o desgaste político de seu mandato, perdendo as eleições seccionais e as principais prefeituras do país para partidos de oposição. Os setores empresariais que em outro momento tinham sido beneficiados pelas políticas correístas, entendem ser hora de diminuir o gasto público, reduzir o volume do Estado e voltar a liberalizar a economia. Ante a nova falta de liquidez do Estado equatoriano, este deixou de ser funcional para seguir dinamizando a economia nacional, de modo que voltou a se colocar em questão a política de subsídios sociais.

O anterior significou incremento das mobilizações populares no conjunto do país e derivou em uma convocatória de greve/mobilização em agosto de 2015, de parte do movimento indígena e do sindicalismo não clientelista, que terminou vergonhosamente reprimida pelas forças de segurança do Estado.

O conflito entre Correa e Moreno

Em tais condições, e em meio a uma agressiva política de endividamento público que derivou na superação do volume atual de dívida externa, com sobras, dos níveis herdados da época neoliberal, o então mandatário equatoriano decidiu não se apresentar às eleições de 2017, mas deixou aberta a porta para uma nova postulação em 2021.

Estrategicamente, o correísmo considerou que era melhor outro mandatário a proceder as políticas econômicas de ajuste já inapelavelmente necessárias ao país, permitindo assim uma regeneração da imagem de Rafael Correa, que estrategicamente voltaria em 2021 para “salvar” o Equador dos programas de ajuste, frutos de um déficit bruto, galopante e insustentável. Assim, em dezembro de 2015, a bancada oficialista aprovou forçosamente uma reforma constitucional que permitia a reeleição do mandatário para o período imediatamente posterior a uma legislatura marcada pela crise econômica herdada da gestão de saída.

Ainda assim, a estratégia para a volta ao poder de Correa passava pela necessidade de seguir controlando o aparato de Estado durante o atual período, bloqueando qualquer possibilidade de fiscalização e auditorias internas que pudesse se fazer sobre um modelo de gestão pública altamente corrupto, que significou durante dez anos a submissão de todos os poderes e órgãos de controle do Estado pelo Executivo.

Isso implicou na necessidade de a Aliança PAIS ganhar em 2017, ficando a maior parte das instituições públicas em mãos de ex-funcionários de provada proximidade com o ex-presidente. A única figura com a qual a Aliança PAIS contava para ganhar tais eleições era Lenin Moreno, que por suas funções de enviado especial do Secretário Geral da ONU sobre a Incapacidade e Acessibilidade residia em Genebra desde 2014, o que implicava no fato de ter se mantido à margem da degradação correísta dos últimos anos. 

Devemos nos remeter mais atrás no passado histórico do Equador para encontrar um mandatário que depois de dez anos de gestão continuada do poder terminou seu período com certo respaldo político – apesar da decadência dos últimos anos – como era o caso de Rafael Correa. Apesar da polarização social criada ao redor de sua figura, Correa abandonou a poltrona presidencial ainda sob importante apoio social, fundamentalmente entre os setores populares, os quais reconheciam o impulso a projetos sociais de caráter assistencialista e o investimento realizado durante a última década no âmbito da infraestrutura e modernização do Estado. Ainda assim, foi uma grande concatenação acelerada de erros políticos estratégicos que fizeram com que o ex-mandatário perdesse a hegemonia política ainda mantida no país.

Com a chegada da nova administração de Lenin, o correísmo deixava em postos estratégicos grande parte de sua equipe anterior de gestão. Isso significava que mantinha o controle sobre enorme e desmedido aparato de propaganda governamental, articulado na década passada, tal como se fazia a respeito do controle sobre a produção – sobre a qual o Estado equatoriano tinha notável incidência durante os últimos dez anos – no altar das responsabilidades estabelecidas em torno da figura do vice-presidente da República, Jorge Glas, o principal homem de confiança de Rafael Correa no novo gabinete, que se mantinha como responsável da mudança de matriz produtiva e investimento em megaprojetos.

Mas ao tempo, o correísmo mantinha o controle também sobre a frente política do governo através de figuras como a primeira titular da Secretaria Nacional de Gestão Pública (Paola Pabón) e do conselheiro presidencial (Ricardo Patiño), o principal operador político dentro da Aliança PAIS durante a gestão anterior, tal como fazia a respeito da Assembleia Nacional – o legislativo equatoriano – através de seus operadores na bancada majoritária da Aliança PAIS.

Não contente, Rafael Correa controlava também, mediante o Conselho de Participação Cidadã e Controle Social, os órgãos de fiscalização e controle do aparato de Estado, cuja designação de responsável respondia integralmente a personalidades afinadas ao ex-presidente. Isso ocorreu em instituições como o Conselho Nacional Eleitoral, a Corte Constitucional, a Controladoria Geral do Estado, a Procuradoria Geral do Estado, o Tribunal Contencioso Eleitoral, o Conselho do Judiciário ou a Defensoria do Povo, entre outros.

Apesar das tensões entre Lenin Moreno e a ala dura correísta serem palpáveis, desde esse mesmo momento, da investidura do atual presidente da República, em 24 de maio passado, momento em que a nova administração descobriu o estado real das finanças públicas, foi a entrega da sede social da CONAIE – estrutura organizativa do movimento indígena e organização social mais importante do país – e o anúncio em julho passado dos primeiros indultos de líderes populares criminalizados durante o regime anterior que geraram reações desqualificadoras de Rafael Correa sobre seu sucessor.

A partir daí os operadores correístas localizados em funções de direção dos distintos meios públicos começam a articular uma campanha contra a imagem do presidente Moreno, aduzindo que o país voltava às políticas do passado e que se estava produzindo uma divisão de poderes com as elites oligárquicas, o que significou que a nova administração morenista nomeasse novos responsáveis em tais meios de comunicação e órgãos. Desta maneira, o ex-presidente Correa perdia o controle do imenso aparato de propaganda e comunicação cuja criação havia sido auspiciada por ele mesmo.

Um mês depois, em inícios de agosto e já com a água no pescoço pelas investigações judiciais que se faziam a respeito da trama da Odebrecht no Equador, o então vice-presidente Jorge Glas – que fora também o segundo mandatário durante a última fase da era Correa – emitia uma extensa carta pública contra o atual chefe de Estado, acusando-o de convergir com os setores politicamente mais reacionários do país. A ruptura de relações entre o presidente Moreno e Jorge Glas acarretou na inabilitação do cargo do segundo, o que trouxe a perda de controle por parte de Rafael Correa sobre o aparato produtivo e os investimentos nos megaprojetos implementados no país. Meses mais tarde e fruto de investigações judiciais anticorrupção, Jorge Glas terminaria ocupando uma cela na prisão número 4 de Quito e destituído do cargo. O correísmo perdia, portanto, também sua incidência no aparato produtivo.

Poucos dias depois do exabrupto vice-presidencial e em vias de solucionar este conflito, o presidente Moreno enviaria a Bruxelas – lugar de residência atual de Correa – os principais operadores políticos de governo, todos eles vinculados durante a gestão anterior do ex-mandatário, com o fim de reconduzir de forma amigável as relações com o ex-presidente. Para surpresa do Executivo, depois da volta a Quito da dita delegação, suas principais cabeças – Ricardo Patiño, Paola Pabón e Virgílio Hernandez – anunciavam em coletiva de imprensa a renúncia a seus cargos no Executivo. Desta maneira, Rafael Correa perdia o controle da frente política governamental.

Destruídos todos os canais de comunicação entre o correísmo e o governo morenista, o presidente Moreno anunciaria nos primeiros meses de outubro passado a convocação de uma Consulta Popular onde algumas perguntas tinham a ver com uma lógica de reforma institucional pós-caudilhista que levasse o país a um caminho de superação do regime anterior. Isso terminaria de dinamitar internamente o partido do governo. Os setores afins ao ex-mandatário determinaram a expulsão, de forma irregular, de Lenin Moreno da Aliança PAIS convocando sem legitimidade jurídica uma convenção nacional da organização política com escasso êxito de adesão. O fato anterior acarretou, depois de uma decisão do Tribunal Contencioso Eleitoral, na perda do correísmo do controle do próprio partido. 

O último episódio deste mar de desacertos correístas se deu já em janeiro do presente ano, quando Correa chamou à desfiliação seus seguidores de Aliança PAIS, o que implicou também na perda de controle do legislativo, ficando com apenas 29 parlamentares, enquanto os outros 45 se alinharam a Lenín Moreno.

Em suma, apesar de ser difícil encontrar um ex-presidente que depois de dez anos de gestão mantivesse o nível de apoio de Correa, também é difícil encontrar algum que tenha demonstrado tal capacidade para dilapidá-lo tão rapidamente.

Consulta e pós-consulta

Foi assim que se chegou a 4 de fevereiro, momento em que o correísmo saboreou pela primeira vez uma derrota eleitoral. No fundo, assistimos algo que foi mais além da realização política de uma realidade indiscutível no Equador: o correísmo nunca construiu uma força social e política afim, mas utilizou o aparato de Estado operando sob lógicas clientelistas em favor de um partido de governo e da construção da imagem midiática de Rafael Correa como um grande caudilho populista. Isso implicou em que, após o abandono da cadeira presidencial e da recusa de seus caprichos nas instituições do Estado, seu apoio político diminuísse notavelmente.

A sociedade equatoriana votou pela conformação de um regime de transição que permitia superar a herança implantada pelo governo anterior, gerando as condições para a construção de um novo cenário político após o fim da hegemonia correísta. Foi cortado o cordão umbilical que vinculava o novo governo ao anterior, o que desabilita a narrativa correísta de que Lenin Moreno ocupa a presidência do país graças ao endosso de votos derivado da figura de Rafael Correa.

Após a consulta o país entra em uma nova fase política. Por um lado, o presidente Lenin Moreno ganhou momentaneamente sua disputa com o antecessor, apesar de Correa ainda manter um terço do eleitorado equatoriano. Correa e seus seguidores, após a desfiliação da Aliança PAIS, estão obrigados a conformar um novo movimento político nacional, apesar de a popularidade de seu líder estar em decadência. Correa, consciente de que o setor de antigos líderes da Aliança PAIS que o acompanham nesta nova aventura acrescentam realmente pouco, dada a má imagem diante da sociedade, está obrigado a liderar pessoalmente a construção do novo partido. Será uma tarefa urgente e nada fácil para o neocorreísmo criar uma nova figura política que tenha chances de disputar a presidência da República em 2021.

Por sua parte, a vontade de tal tendência é ocupar o espaço político da esquerda equatoriana, algo que já fizeram em 2006, apesar dos desencontros entre seu discurso e sua prática. Conseguir tal objetivo passa por bloquear qualquer possibilidade de construção de alternativas políticas no campo popular, algo urgentemente necessário para um país que sofre de uma esquerda cujo discurso político se encontra sem capacidade de sintonia com a sociedade, onde não existe geração de novas lideranças, e que se vê carente de construir uma proposta convincente para um novo modelo de sociedade e país.

Apesar de ser certo que a esquerda política e social equatoriana foi fracionada, em muitos casos cooptada e até perseguida pelo regime correísta durante os últimos dez anos, também é certo que existe uma incapacidade política por parte de sua endogâmica dirigência para se reinventar e reposicionar, com um discurso adaptado ao momento atual do país. O mero fato de que grande parte de tal esquerda apoiou em sua lógica anticorreísta a candidatura do conservador Guillermo Lasso no segundo turno das últimas eleições presidenciais é uma demonstração palpável de sua desorientação política e descrédito do que atualmente gozam na cidadania equatoriana. Nas fileiras conservadoras, as forças políticas que até o momento decidiram não fazer oposição política contumaz ao atual governo mudaram de atitude.

A proximidade de eleições seccionais, daqui um ano, faz as organizações políticas da direita voltarem a assumir protagonismo depois de uma aliança antinatural que permitiu a sensibilidades ideológicas muito diferentes um pacto de não agressão em troca de trabalharem, todos juntos, pelo Sim nesta consulta, em nome da finalidade de enterrar politicamente o correísmo. 

Meios de comunicação, setores empresariais e forças políticas conservadoras já anunciaram mudanças sobre sua ação diante do governo de Lenín Moreno, o que significará o aumento da pressão política e possivelmente de manifestações de rua, no sentido de que o governo adote posições mais reacionárias fundamentalmente no âmbito da política econômica.

Em todo caso, os setores da direita se mantêm divididos, existindo duas cabeças, até agora politicamente enfrentadas, que respondem a grupos de interesses diferentes. Tanto Guillermo Lasso, de forma aberta, como Jaime Nebot, de maneira mais sutil, aspiram à presidência da República no ano de 2021 ou até antes, se forem capazes de forçar o fim antecipado do mandato morenista, um governo sobre o qual visualizam debilidades não existentes no anterior.

Portanto, o governo nacional enfrenta uma situação inédita a partir de agora, a qual consistirá em receber de forma indiscriminada ataques tanto da direita – inclusive meios de comunicação privados e lobbies empresariais como nesta pretendida nova esquerda correísta. Que Lenín Moreno e sua equipe de gestão sejam capazes de fazer frente a tais pressões está por ser visto. De todo modo, a estratégia de um e outro lado já começou, em alguns casos até com apoio internacional, tal como no caso de Correa, que em breve disporá da plataforma televisiva Russian Today (RT), um meio de comunicação sensacionalista a serviço do aparato de propaganda de Vladimir Putin, como ferramenta de ataque ao atual governo.



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