Por Decio Machado
Correio da Cidadania
Neste 19 de fevereiro, o Equador enfrenta suas primeiras eleições presidenciais nos últimos 10 anos e meio sem o nome de Rafael Correa Delgado na cédula de votação. Entender a ascensão da Aliança PAÍS e Rafael Correa ao poder implica compreender também suas origens, com a conformação deste partido político a apenas oito meses das eleições de 2006, onde se determinou a primeira das múltiplas vitórias eleitorais correístas nesta década.
Antecedentes imediatos do “correísmo”
Tal como acontecia no resto da região, no Equador se vivia desde a década de 90 um marco de instabilidade política, fruto de um apertado ciclo de levantes populares e grandes mobilizações que conduziram três presidentes constitucionalmente eleitos à queda (Abdalá Bucaram em 1997, Jamil Mahuad em 2000 e Lucio Gutiérrez em 2005), com o conseguinte descrédito do regime de partidos, das instituições políticas equatorianas e do sistema econômico neoliberal implantado depois do estouro da crise da dívida externa de 1982. A saída da crise adveio da progressiva construção de um modelo empresarial de desenvolvimento, consolidado a partir do governo de Sixto Durán Ballén (1992-1996) e ampliado pelos governos sucessores.
Este período pode ser definido como a fase inicial da modernização do capitalismo equatoriano, durante o qual se melhoraram os lucros empresariais, às custas da deterioração dos serviços públicos, encolhimento do papel e tamanho do Estado, a concentração da riqueza, a desregulação tributária, a precarização laboral e, a partir da quebra financeira (1998-2000) e da perda da soberania monetária através da dolarização do país, com a explosão do fenômeno migratório equatoriano.
Neste contexto no qual, entre maio e junho de 1990, tomava forma o primeiro levante dos povos e nacionalidades indígenas do Equador. Suas demandas, de dezesseis pontos, tratavam da defesa e reivindicação de seus direitos, territórios, justiça e liberdade.
O “Levante do Inti Raymi” consolidou o movimento indígena como um sujeito protagonista das lutas sociais equatorianas durante um período que se prolongou entre 1990 e 2005, passando da resistência popular ao cogoverno durante uma breve etapa do governo de Lucio Gutierrez. Convertido o movimento político denominado Pachakutik na principal força de oposição ao ajuste estrutural implementado no Equador desde as instituições de Bretton Woods, sua participação na gestão governamental – o que inicialmente foi considerado um triunfo – geraria uma crise interna, da qual o movimento indígena em seu conjunto ainda não foi capaz de levantar a cabeça. Isso fez com que o cenário político mudasse e ganhassem força as demandas cidadãs, em torno das quais se aglutinaram as classes e setores médios urbanos. Isso propiciaria a “revolta dos foragidos” e a queda do governo gutierrista em abril de 2005, última crise governamental vivida neste pequeno país andino.
É a partir deste preâmbulo que fica factível a construção, apenas meses antes do primeiro turno das eleições presidenciais de 2006, de um fenômeno político novo, que, no entanto, foi tremendamente eficaz nas urnas: a conformação da Aliança PAÍS, sob liderança de um jovem professor universitário, Rafael Correa, cuja experiência política era alheia às lutas dos movimentos sociais locais e cujo único antecedente político era ter ocupado durante quatro meses o cargo de ministro da Economia do governo anterior à sua eleição.
A década correísta
Depois de sua posse, a 15 de janeiro de 2007, o objetivo do governo do presidente Correa foi abordar um segundo processo de modernização capitalista do país, desta vez mediante a reinstitucionalização e forte intervenção do Estado, recuperando a institucionalidade pública e a relegitimação do sistema de representação política institucional. Os ideólogos do correísmo chamariam isso de construção de uma sociedade “pós-neoliberal”, implementando um processo de reformas por fases, que pretendia como objetivo da construção de um segundo momento que poderíamos definir como “socialismo de mercado” (capitalismo popular), para terminar em um terceiro estágio, que acharam por bem definir como “biossocialismo” (uma sociedade de autoconsciência implementada sob os princípios civilizatórios do “Bem Viver”).
Na prática, e depois de mais de dez anos de governo do presidente Rafael Correa, podemos asseverar que o processo não foi capaz de passar de sua primeira fase. Seria o próprio presidente Correa quem, com a seguinte frase, definiria de forma adequada sua gestão frente ao público: “basicamente, estamos fazendo melhor as coisas com o mesmo modelo de acumulação, antes de mudá-lo, porque não é nosso desejo prejudicar os ricos, mas, sim, é nossa intenção ter uma sociedade mais justa e equitativa” (Diário El Telegrafo, 15 de janeiro de 2012).
Ainda assim, chegado o ano de 2013, o fim do período conhecido popularmente na América Latina como “a década dourada ou o boom das matérias-primas”, as políticas públicas correístas sofreram uma forte involução devido à falta de liquidez econômica governamental.
Dentro desta involução, destacam-se fatos como a ampliação da fronteira petrolífera, com seu correspondente impacto social e ambiental sobre o conjunto de territórios originários dos povos e nacionalidades indígenas ancestrais; a entrega dos campos maduros (conhecidos no mundo petroleiro como as joias da coroa) a transnacionais extrativistas estrangeiras; a concessão sem licitação pública de vários portos estratégicos do país a grupos de capital estrangeiro; o apoio aos grandes do agronegócio, em detrimento da soberania alimentar nacional; um processo de flexibilização laboral que permite a redução das horas de trabalho das e dos operários(as); a volta da vigilância sobre a economia nacional pelo FMI; assim como o atual processo em marcha de privatização de hidroelétricas, empresas de gás e outras empresas públicas que, inicialmente, foram resgatadas durante a primeira fase deste processo político autodenominado propagandisticamente como “Revolução Cidadã”.
O correísmo, tal como outros governos progressistas da região, caracterizou-se durante seus anos de bonança econômica por impulsionar políticas sociais compensatórias, que foram a base da nova governabilidade, a par da que exacerbou o modelo de exploração extrativista de recursos naturais, fortalecendo um Estado que tinha ficado reduzido à mínima expressão durante o período neoliberal. Fomentou-se amplamente a construção de obras de infraestrutura no país, na busca de desenvolver certa competividade sistêmica (criação de um entorno sustentador que possa conduzir a um desenvolvimento acelerado, a buscar vantagens competitivas para o investimento privado nacional e estrangeiro).
A gestão correísta durante o período de bonança econômica (a arrecadação do Estado equatoriano entre 2007 e 2015 foi de 221 bilhões de dólares, o que significou uma receita média 3,84 vezes superior à arrecadação verificada entre os anos de 2000 e 2006) permitiu que a pobreza pela renda se reduzisse em torno de 12 pontos, passando o salário básico de 160 dólares em 2006 a 340 dólares em 2013; também permitiu que o Estado investisse aproximadamente 13,5 bilhões de dólares em saúde, impulsionando a construção de hospitais e outras infraestruturas sanitárias; permitiu que em matéria de Educação se tenha incrementado a taxa de matrícula em Educação básica de 92% para 96%, sendo seis pontos percentuais em na população mais pobre; e permitiu que o Estado tenha intervindo em 9000 quilômetros de estradas durante esta década.
O crescimento da renda per capita durante referido período ativou a “popularização” do sistema financeiro privado (facilidade de acesso ao crédito para famílias humildes a fim de incentivar o consumo), o que consolidou um capital emergente que, ao enfocar seus critérios de rentabilidade no mercado financeiro interno, agravou o problema já anteriormente existente, no caso, de controle das empresas monopólicas sobre os distintos setores do mercado nacional equatoriano.
É assim que a intervenção do Estado na dinamização da economia, principal característica do socialismo do século 21, significou que o gasto de investimento passara de 11,4% do Orçamento Geral do Estado em 2008 a 20,5% em 2013, enquanto os grandes grupos econômicos que operam no mercado nacional incrementaram em quase 40% suas receitas. Em poucas palavras, as maiores empresas que operam no mercado equatoriano ganharam durante o período progressista substancialmente mais que durante os anos anteriores à chegada do presidente Rafael Correa ao Palácio de Carondelet. Assim, em 2006, com um PIB de 46,8 bilhões de dólares, as 300 maiores empresas do Equador entraram com 20,363 bilhões de dólares, o que vem a significar 43,6% do PIB.
Apenas seis anos depois, em 2012, e com um PIB de 84,7 bilhões de dólares (quase o dobro de 2006), as mesmas empresas entraram com 39,289 bilhões de dólares, o que implica três pontos percentuais a mais no PIB nacional. Mesmo assim, desde que começara a queda em 2013 dos preços das matérias primas no mercado global, o país entrou em uma crise econômica que é fruto da falta de mudanças estruturais no âmbito econômico. Três fatores externos (queda do preço do petróleo, apreciação do dólar e encarecimento do financiamento externo), somados à falta de diversificação produtiva interna, abalaram seriamente o país.
O Equador possuir uma estrutura produtiva altamente dependente das exportações de óleo cru e outros bens primários, assim como da importação de produtos elaborados para seu bom desenvolvimento. Isso fez com que, quando as exportações primárias decresceram, o país tenha voltado ao caminho do endividamento externo e que a economia equatoriana tenha se contraído, em 2015, em 1,7% do PIB.
O chamado “socialismo do século 21” no Equador não foi capaz, por inépcia ou falta de vontade política, de transformar a matriz de acumulação capitalista herdada do neoliberalismo. Isso implica que a estrutura produtiva nacional se mantenha concentrada em poucos grupos econômicos que exercem seu controle sobre os distintos setores da economia nacional, apesar de serem baixos geradores de emprego. Os pequenos empreendimentos que dão emprego a até 9 pessoas geram 70% do emprego nacional, enquanto as empresas que empregam de 100 pessoas em diante concentram ao redor da metade das receitas econômicas do país. O fisco equatoriano reconhece a existência de 118 grandes grupos econômicos que operam no mercado nacional, dos quais 16 controlam a maior parte da economia. As políticas fiscais e produtivas desenvolvidas nos últimos anos permitiram uma série de exceções fiscais que determinam o fato de a pressão fiscal não recair sobre as grandes empresas, arrecadando-se dessas apenas 15% do montante do Imposto de Renda.
De tabela, a atual deterioração da economia equatoriana faz com que os indicadores sociais positivos conquistados durante grande parte do período correísta no âmbito da diminuição da pobreza, a diminuição do emprego ou as melhorias em matéria de capacidade aquisitiva da população, se encontrem na atualidade em franca decadência. Para oferecer apenas um par de exemplos sobre esta afirmação: durante o exercício 2015 se perderam 340000 postos de trabalho digno no país, enquanto que o aumento do salário básico para 2017 equivale a 30 centavos de dólar por dia, o que não dá pra financiar, no acumulado de uma semana, um triste prato de comida no refeitório popular mais barato da cidade de Quito.
A questão se agrava à medida que o aumento relativo da capacidade aquisitiva da população equatoriana durante a etapa de bonança conduziu a uma política interna de democratização do acesso ao consumo, que no fim das contas derivou em um forte crescimento do endividamento familiar. Segundo um estudo do Colégio de Economistas de Pichincha, 41% dos lares equatorianos gastam mais do que ganham, sendo as pessoas mais endividadas as que menos renda auferem (endividamento maior entre os pobres).
É esta nova condição econômica que atravessa o país que fez o correísmo perder legitimidade social durante os últimos três anos do mandato de Rafael Correa. A crise hegemônica neoliberal não conduziu o Equador a uma implementação de um modelo pós-neoliberal ancorado em um projeto de transformação social e econômica. O correísmo é apenas um exemplo mais de lógicas ilusórias capitalistas, que pretendem combinar crescimento capitalista subordinado e emancipação social. E com uma grande dose propagandística de radicalidade discursiva.
Atualmente, fica evidente que o construído em matéria de melhoramento dos indicadores sociais ao longo deste período tem pilares demasiadamente frágeis. Dita condição nos deve fazer refletir, aqui e em outros lugares, sobre o fato de que não é possível melhorar estruturalmente a situação dos mais pobres sem tocar os privilégios das elites econômicas e dos grandes grupos de poder.
A atual disputa eleitoral
O fato de que Rafael Correa não esteja na cédula de votação, somado à condição de deterioração econômica que vive o país, permitiu aos setores da oposição política aspirarem pela primeira vez, de forma séria, ganhar a próxima eleição.
Mesmo assim, as rivalidades existentes entre as distintas famílias que conformam o conservadorismo equatoriano não lhes permitiu desenvolver uma estratégia de unidade similar à que, em algum momento, desenvolveu a oposição da Venezuela. Isso faz com que existam duas facções enfrentadas na direita equatoriana. Uma encabeçada por um magnata proprietário de um dos principais bancos do país (Guillermo Lasso) e outra por uma política da velha direita social-cristã (Cynthia Viteri).
Conscientes de que não podem ganhar as eleições presidenciais separadamente, o objetivo de ambos é forçar o segundo turno, tentando se posicionar, cada um deles, como contendor final do continuísmo governista. De se conseguir tal objetivo, se articularia uma aliança de quase totalidade de forças opositoras para apoiar a candidatura conservadora. Apesar do anterior, até agora ambas as facções da direita se confrontaram dialética e até fisicamente, em cenários de aparição conjunta. Tudo isso apesar de suas propostas eleitorais serem similares e terem como proposta a reimplantação do neoliberalismo no Equador.
No âmbito das esquerdas dissidentes do regime, se alinharam um conjunto de forças opositoras cujo leque abarca posições ideológicas que vão desde a socialdemocracia liberal (encarnada pela reconstituição do partido Esquerda Democrática), até múltiplos setores que foram pouco a pouco ficando excluídos do governo correísta, passando pelo próprio Pachakutik e a Unidade Popular (um reconvertido e muito reduzido partido maoísta que no passado se chamou Movimento Democrático Popular).
Essa aliança eleitoral, que na prática carece de homogeneidade ideológica e goza de escassas expectativas de vitória, se agrupa em torno da candidatura do general Paco Moncayo, um velho militar de corte nacionalista que alcançou a notoriedade em 1995 como comandante em chefe das Forças Armadas do Equador em seu conflito militar com o Peru. Moncayo é precursor do que no país se convencionou chamar, em um átimo de imaginação inusitada, “militarismo ilustrado”.
Nos últimos dias, as pesquisas mais sérias no país indicam que o partido do governo (Aliança PAÍS) baixa paulatinamente sua intenção de voto devido aos incessantes escândalos de corrupção institucional que estão aparecendo quase de forma diária na imprensa. O desenho é estratégico e sem dúvida elaborado por uma oposição conservadora, que aguarda até a campanha eleitoral para, com a cumplicidade da mídia privada, posicionar uma larga lista de depravados casos governamentais que dão luz à decomposição ética do regime.
Essa campanha eleitoral se tornou, para a Aliança PAÍS, uma espécie de corrida contra o relógio, pois mesmo que se mantenha como opção preferencial do eleitorado equatoriano, sua queda na intenção de voto é sustentada e suas estratégias contam os dias que faltam de campanha entre as angústias da podridão que se sente ao seu redor.
Para ganhar o primeiro turno com maior absoluta, a Aliança PAÍS precisa de 40% dos votos validos, com 10% de vantagem sobre o secundo lugar. Dita condição começa a se colocar em questão, ainda que o governo conte com o apoio de um Conselho Nacional Eleitoral (órgão condutor da democracia do país, mas cuja composição é inteiramente governista) e cuja imparcialidade eleitoral está sob questão. Paralelamente, o partido CREO (Acredito) liderado por Guillermo Lasso (principal força opositora) aposta pela opção escolhida no último dia por parte deste 30% do eleitorado que nas últimas eleições votou em Correa, mas atualmente se define como indeciso – apesar da altura em que nos encontramos na campanha eleitoral e de que o voto no Equador seja obrigatório para os cidadãos entre 18 e 65 anos.
Em todo caso, e mais além da opção política que vença a eleição, o próximo governo se verá obrigado a proceder um plano de ajuste que conduzirá à redução do investimento público e uma renegociação dos pagamentos da dívida externa contraída durante os últimos anos pelo regime. Ademais, basta ouvir os discursos dos principais presidenciáveis para entender que os planos desenhados para a saída da atual crise recairão, com todas as luzes, sobre as costas dos e das trabalhadoras.
É esperar que, com base no anterior, e com um governo que já não gozará de legitimidade social e política sobre a qual se sustentou nos primeiros sete anos de governo correísta, exista uma recomposição do tecido social equatoriano. Será apenas através da mobilização social que se reempoderarão os movimentos sociais equatorianos, esses que protagonizaram em seu momento as lutas de resistência ao neoliberalismo, permitindo um acúmulo histórico que levou a Aliança PAÍS ao poder, e que hoje se sentem fraudados pela ação de um governo que disse representá-los.
Decio Machado é sociólogo e consultor político residente no Equador.
Publicado originalmente em Viento Sur.
Traduzido por Gabriel Brito, do Correio da Cidadania.
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