Em
4 de fevereiro o povo equatoriano decidiu terminar com a
hegemonia correísta que dominou o país nos últimos 11 anos. Dois de
cada três cidadãos votaram a favor das perguntas da Consulta
Popular impulsionada pelo Governo Nacional, em uma lógica de
disputa auspiciada pelo ex-mandatário Rafael Correa,
produzindo-se pela primeira vez na história uma rejeição cidadã
majoritária aos seus postulados políticos. Até então – mediante
consultas populares, plebiscitos, referendos – o ex-presidente
Correa havia chegado a acumular em apenas dez anos doze vitórias
consecutivas nas urnas.
Das sete perguntas impulsionadas pelo Executivo, as três primeiras tinham relação direta com o correísmo, abordando temas como:
• A supressão de direitos políticos de condenados por corrupção, o que afeta a um número cada vez maior de altos funcionários que formaram parte do núcleo de poder do regime anterior – já há uma dezena de ex-ministros correístas que se encontram imputados em diferentes processos e este número aumentará – e que poderia terminar afetando o próprio Rafael Correa.
• A eliminação da emenda constitucional aprovada na última fase do governo anterior, pela qual implementava a reeleição indefinida nos cargos de gestão pública a partir de 2021, e que permitia a Correa voltar a se apresentar, tal como era sua intenção, no próximo pleito presidencial;
• E a recomposição do Conselho de Participação Cidadã e Controle Social – popularmente conhecido como o quinto poder constitucional – cujos membros designavam parte dos titulares das instituições do país, o que permitiu ao aparato correísta seguir controlando a estrutura do Estado, apesar de o ex-presidente não ocupar mais o cargo máximo.
O que foi o correísmo?
Compreender a situação atual do Equador significa entender o que foi isso que se convencionou chamar de correísmo e porque deixou de ser funcional neste momento para as elites equatorianas.
Desde 1997, a partir do governo de Abdalá Bucaram, o Equador inaugurou uma etapa de crise institucional permanente que fez com que nenhum presidente eleito desde então nas urnas conseguisse terminar o mandato.
Evidentemente, isso gerava grande instabilidade política e se tornou um fator de desequilíbrio importante a respeito de uma política de investimentos que se faziam cada vez mais urgentes e necessárias para a modernização capitalista que o país deveria empreender após a crise financeira de 1999 e 2000.
Com a entrada do presente século, a economia mundial se estabilizou, superando várias e importantes crises sofridas em diversos países do mundo – México e Venezuela (1994), Tailândia, Indonésia, Filipinas, Taiwan, Coreia do Sul (1997), Rússia (1998), Brasil (1999) ou Argentina (2001) – o que permitiu a melhora econômica internacional, com taxas de crescimento de 4% a 6% no começo da década, até a chegada da crise financeira global de 2008.
Da mesma forma, desde 2003 os preços das commodities aumentaram pelos efeitos dos furacões, como o Katrina, em instalações petroleiras; o crescimento na economia; e, particularmente, pelo auge da indústria da construção, que terminou em uma bolha especulativa cuja explosão fez os investidores voltarem suas pautas a mercados especulativos, tais como de ouro e petróleo, causando uma superdemanda artificial, o que fez o preço do óleo cru chegar ao seu ápice de 147,27 dólares o barril, em julho de 2008.
Neste contexto, o óleo cru equatoriano, que depende da cotização do petróleo norte-americano West Texas Intermediate (WTI) – que é o parâmetro de óleo cru nos EUA - e basicamente é vendido tanto pela PetroEcuador como pelas companhias privadas estrangeiras do país, também elevou notavelmente seus preços.
Sendo um país economicamente dependente de tal produto, o crescimento médio do PIB equatoriano durante a primeira década do presente século foi de 4,4%, enquanto durante os dez anos anteriores tal indicador não superou 1,8%. O anterior indica que a partir do ano 2000, a economia equatoriana começou a consolidar em grande medida apoiada pelas condições favoráveis – preço do petróleo e remessas provenientes dos migrantes – gerando-se as condições adequadas para uma modernização tardia do sistema capitalista nacional.
Neste contexto, o setor mais dinâmico do capital nacional entendeu que poderia melhorar suas possibilidades de negócio propiciando um maior nível de consumo nos mercados internos através de certa divisão do excedente petroleiro – não da distribuição da riqueza que continua em mãos de poucos – e a incorporação ao mercado de setores populares mediante o endividamento familiar e financeirização popular (democratização do consumo com base em empréstimos do setor financeiro privado). Este é o papel que fundamentalmente desempenhou o governo de Rafael Correa durante o último período de bonança econômica no Equador.
Ao largo da primeira década do presente século, a maior fatia de participação no PIB da economia nacional foi o consumo privado, o qual representou uma média de 66,6% do PIB, convertendo-se em fator de maior contribuição ao crescimento nacional durante o período prévio à queda de preços do petróleo.
A dinamização da economia nacional tendo como motor o Estado, eixo da política econômica correísta, significou que os setores empresariais e financeiros foram os principais beneficiados em uma ação que carecia de riscos para os investimentos privados, pois se fazia base do erário público.
O respeito demonstrado pelo governo correísta à matriz de acumulação herdada da era neoliberal acarretou na inexistência da mais mínima transformação de caráter estrutural sobre os pilares que fundamentam os eixos constitutivos do poder no Equador; isso, apesar de setores historicamente esquecidos poderem se beneficiar durante o período de bonança de certas políticas assistencialistas, baseadas na transferência do excedente derivado de aprofundamento das políticas extrativistas. De quebra, significou que enquanto se ancorava em um propagandístico discurso soberanista, no interior do país se piorava cada vez mais a dependência econômica internacional dos mercados especulativos globais e se reprimarizassem substancialmente a economia global.
O modelo econômico funcionou e inclusive gozou de amplo apoio popular, milagre econômico diziam, enquanto durou o boom das commodities, indo abaixo toda a engrenagem das políticas sociais e econômicas correístas a partir da queda do preço do óleo cru em 2013.
É a partir de então, quando começam a se deteriorar certos serviços públicos, que a economia nacional se paralisa, o consumo interno cai e os indicadores de diminuição da pobreza e incremento da capacidade aquisitiva por parte dos trabalhadores passa a decair.
Em fevereiro de 2014, o governo do presidente Rafael Correa começaria a sentir o desgaste político de seu mandato, perdendo as eleições seccionais e as principais prefeituras do país para partidos de oposição. Os setores empresariais que em outro momento tinham sido beneficiados pelas políticas correístas, entendem ser hora de diminuir o gasto público, reduzir o volume do Estado e voltar a liberalizar a economia. Ante a nova falta de liquidez do Estado equatoriano, este deixou de ser funcional para seguir dinamizando a economia nacional, de modo que voltou a se colocar em questão a política de subsídios sociais.
O anterior significou incremento das mobilizações populares no conjunto do país e derivou em uma convocatória de greve/mobilização em agosto de 2015, de parte do movimento indígena e do sindicalismo não clientelista, que terminou vergonhosamente reprimida pelas forças de segurança do Estado.
O conflito entre Correa e Moreno
Em tais condições, e em meio a uma agressiva política de endividamento público que derivou na superação do volume atual de dívida externa, com sobras, dos níveis herdados da época neoliberal, o então mandatário equatoriano decidiu não se apresentar às eleições de 2017, mas deixou aberta a porta para uma nova postulação em 2021.
Estrategicamente, o correísmo considerou que era melhor outro mandatário a proceder as políticas econômicas de ajuste já inapelavelmente necessárias ao país, permitindo assim uma regeneração da imagem de Rafael Correa, que estrategicamente voltaria em 2021 para “salvar” o Equador dos programas de ajuste, frutos de um déficit bruto, galopante e insustentável. Assim, em dezembro de 2015, a bancada oficialista aprovou forçosamente uma reforma constitucional que permitia a reeleição do mandatário para o período imediatamente posterior a uma legislatura marcada pela crise econômica herdada da gestão de saída.
Ainda assim, a estratégia para a volta ao poder de Correa passava pela necessidade de seguir controlando o aparato de Estado durante o atual período, bloqueando qualquer possibilidade de fiscalização e auditorias internas que pudesse se fazer sobre um modelo de gestão pública altamente corrupto, que significou durante dez anos a submissão de todos os poderes e órgãos de controle do Estado pelo Executivo.
Isso implicou na necessidade de a Aliança PAIS ganhar em 2017, ficando a maior parte das instituições públicas em mãos de ex-funcionários de provada proximidade com o ex-presidente. A única figura com a qual a Aliança PAIS contava para ganhar tais eleições era Lenin Moreno, que por suas funções de enviado especial do Secretário Geral da ONU sobre a Incapacidade e Acessibilidade residia em Genebra desde 2014, o que implicava no fato de ter se mantido à margem da degradação correísta dos últimos anos.
Devemos nos remeter mais atrás no passado histórico do Equador para encontrar um mandatário que depois de dez anos de gestão continuada do poder terminou seu período com certo respaldo político – apesar da decadência dos últimos anos – como era o caso de Rafael Correa. Apesar da polarização social criada ao redor de sua figura, Correa abandonou a poltrona presidencial ainda sob importante apoio social, fundamentalmente entre os setores populares, os quais reconheciam o impulso a projetos sociais de caráter assistencialista e o investimento realizado durante a última década no âmbito da infraestrutura e modernização do Estado. Ainda assim, foi uma grande concatenação acelerada de erros políticos estratégicos que fizeram com que o ex-mandatário perdesse a hegemonia política ainda mantida no país.
Com a chegada da nova administração de Lenin, o correísmo deixava em postos estratégicos grande parte de sua equipe anterior de gestão. Isso significava que mantinha o controle sobre enorme e desmedido aparato de propaganda governamental, articulado na década passada, tal como se fazia a respeito do controle sobre a produção – sobre a qual o Estado equatoriano tinha notável incidência durante os últimos dez anos – no altar das responsabilidades estabelecidas em torno da figura do vice-presidente da República, Jorge Glas, o principal homem de confiança de Rafael Correa no novo gabinete, que se mantinha como responsável da mudança de matriz produtiva e investimento em megaprojetos.
Mas ao tempo, o correísmo mantinha o controle também sobre a frente política do governo através de figuras como a primeira titular da Secretaria Nacional de Gestão Pública (Paola Pabón) e do conselheiro presidencial (Ricardo Patiño), o principal operador político dentro da Aliança PAIS durante a gestão anterior, tal como fazia a respeito da Assembleia Nacional – o legislativo equatoriano – através de seus operadores na bancada majoritária da Aliança PAIS.
Não contente, Rafael Correa controlava também, mediante o Conselho de Participação Cidadã e Controle Social, os órgãos de fiscalização e controle do aparato de Estado, cuja designação de responsável respondia integralmente a personalidades afinadas ao ex-presidente. Isso ocorreu em instituições como o Conselho Nacional Eleitoral, a Corte Constitucional, a Controladoria Geral do Estado, a Procuradoria Geral do Estado, o Tribunal Contencioso Eleitoral, o Conselho do Judiciário ou a Defensoria do Povo, entre outros.
Apesar das tensões entre Lenin Moreno e a ala dura correísta serem palpáveis, desde esse mesmo momento, da investidura do atual presidente da República, em 24 de maio passado, momento em que a nova administração descobriu o estado real das finanças públicas, foi a entrega da sede social da CONAIE – estrutura organizativa do movimento indígena e organização social mais importante do país – e o anúncio em julho passado dos primeiros indultos de líderes populares criminalizados durante o regime anterior que geraram reações desqualificadoras de Rafael Correa sobre seu sucessor.
A partir daí os operadores correístas localizados em funções de direção dos distintos meios públicos começam a articular uma campanha contra a imagem do presidente Moreno, aduzindo que o país voltava às políticas do passado e que se estava produzindo uma divisão de poderes com as elites oligárquicas, o que significou que a nova administração morenista nomeasse novos responsáveis em tais meios de comunicação e órgãos. Desta maneira, o ex-presidente Correa perdia o controle do imenso aparato de propaganda e comunicação cuja criação havia sido auspiciada por ele mesmo.
Um mês depois, em inícios de agosto e já com a água no pescoço pelas investigações judiciais que se faziam a respeito da trama da Odebrecht no Equador, o então vice-presidente Jorge Glas – que fora também o segundo mandatário durante a última fase da era Correa – emitia uma extensa carta pública contra o atual chefe de Estado, acusando-o de convergir com os setores politicamente mais reacionários do país. A ruptura de relações entre o presidente Moreno e Jorge Glas acarretou na inabilitação do cargo do segundo, o que trouxe a perda de controle por parte de Rafael Correa sobre o aparato produtivo e os investimentos nos megaprojetos implementados no país. Meses mais tarde e fruto de investigações judiciais anticorrupção, Jorge Glas terminaria ocupando uma cela na prisão número 4 de Quito e destituído do cargo. O correísmo perdia, portanto, também sua incidência no aparato produtivo.
Poucos dias depois do exabrupto vice-presidencial e em vias de solucionar este conflito, o presidente Moreno enviaria a Bruxelas – lugar de residência atual de Correa – os principais operadores políticos de governo, todos eles vinculados durante a gestão anterior do ex-mandatário, com o fim de reconduzir de forma amigável as relações com o ex-presidente. Para surpresa do Executivo, depois da volta a Quito da dita delegação, suas principais cabeças – Ricardo Patiño, Paola Pabón e Virgílio Hernandez – anunciavam em coletiva de imprensa a renúncia a seus cargos no Executivo. Desta maneira, Rafael Correa perdia o controle da frente política governamental.
Destruídos todos os canais de comunicação entre o correísmo e o governo morenista, o presidente Moreno anunciaria nos primeiros meses de outubro passado a convocação de uma Consulta Popular onde algumas perguntas tinham a ver com uma lógica de reforma institucional pós-caudilhista que levasse o país a um caminho de superação do regime anterior. Isso terminaria de dinamitar internamente o partido do governo. Os setores afins ao ex-mandatário determinaram a expulsão, de forma irregular, de Lenin Moreno da Aliança PAIS convocando sem legitimidade jurídica uma convenção nacional da organização política com escasso êxito de adesão. O fato anterior acarretou, depois de uma decisão do Tribunal Contencioso Eleitoral, na perda do correísmo do controle do próprio partido.
O último episódio deste mar de desacertos correístas se deu já em janeiro do presente ano, quando Correa chamou à desfiliação seus seguidores de Aliança PAIS, o que implicou também na perda de controle do legislativo, ficando com apenas 29 parlamentares, enquanto os outros 45 se alinharam a Lenín Moreno.
Em suma, apesar de ser difícil encontrar um ex-presidente que depois de dez anos de gestão mantivesse o nível de apoio de Correa, também é difícil encontrar algum que tenha demonstrado tal capacidade para dilapidá-lo tão rapidamente.
Consulta e pós-consulta
Foi assim que se chegou a 4 de fevereiro, momento em que o correísmo saboreou pela primeira vez uma derrota eleitoral. No fundo, assistimos algo que foi mais além da realização política de uma realidade indiscutível no Equador: o correísmo nunca construiu uma força social e política afim, mas utilizou o aparato de Estado operando sob lógicas clientelistas em favor de um partido de governo e da construção da imagem midiática de Rafael Correa como um grande caudilho populista. Isso implicou em que, após o abandono da cadeira presidencial e da recusa de seus caprichos nas instituições do Estado, seu apoio político diminuísse notavelmente.
A sociedade equatoriana votou pela conformação de um regime de transição que permitia superar a herança implantada pelo governo anterior, gerando as condições para a construção de um novo cenário político após o fim da hegemonia correísta. Foi cortado o cordão umbilical que vinculava o novo governo ao anterior, o que desabilita a narrativa correísta de que Lenin Moreno ocupa a presidência do país graças ao endosso de votos derivado da figura de Rafael Correa.
Após a consulta o país entra em uma nova fase política. Por um lado, o presidente Lenin Moreno ganhou momentaneamente sua disputa com o antecessor, apesar de Correa ainda manter um terço do eleitorado equatoriano. Correa e seus seguidores, após a desfiliação da Aliança PAIS, estão obrigados a conformar um novo movimento político nacional, apesar de a popularidade de seu líder estar em decadência. Correa, consciente de que o setor de antigos líderes da Aliança PAIS que o acompanham nesta nova aventura acrescentam realmente pouco, dada a má imagem diante da sociedade, está obrigado a liderar pessoalmente a construção do novo partido. Será uma tarefa urgente e nada fácil para o neocorreísmo criar uma nova figura política que tenha chances de disputar a presidência da República em 2021.
Por sua parte, a vontade de tal tendência é ocupar o espaço político da esquerda equatoriana, algo que já fizeram em 2006, apesar dos desencontros entre seu discurso e sua prática. Conseguir tal objetivo passa por bloquear qualquer possibilidade de construção de alternativas políticas no campo popular, algo urgentemente necessário para um país que sofre de uma esquerda cujo discurso político se encontra sem capacidade de sintonia com a sociedade, onde não existe geração de novas lideranças, e que se vê carente de construir uma proposta convincente para um novo modelo de sociedade e país.
Apesar de ser certo que a esquerda política e social equatoriana foi fracionada, em muitos casos cooptada e até perseguida pelo regime correísta durante os últimos dez anos, também é certo que existe uma incapacidade política por parte de sua endogâmica dirigência para se reinventar e reposicionar, com um discurso adaptado ao momento atual do país. O mero fato de que grande parte de tal esquerda apoiou em sua lógica anticorreísta a candidatura do conservador Guillermo Lasso no segundo turno das últimas eleições presidenciais é uma demonstração palpável de sua desorientação política e descrédito do que atualmente gozam na cidadania equatoriana. Nas fileiras conservadoras, as forças políticas que até o momento decidiram não fazer oposição política contumaz ao atual governo mudaram de atitude.
A proximidade de eleições seccionais, daqui um ano, faz as organizações políticas da direita voltarem a assumir protagonismo depois de uma aliança antinatural que permitiu a sensibilidades ideológicas muito diferentes um pacto de não agressão em troca de trabalharem, todos juntos, pelo Sim nesta consulta, em nome da finalidade de enterrar politicamente o correísmo.
Meios de comunicação, setores empresariais e forças políticas conservadoras já anunciaram mudanças sobre sua ação diante do governo de Lenín Moreno, o que significará o aumento da pressão política e possivelmente de manifestações de rua, no sentido de que o governo adote posições mais reacionárias fundamentalmente no âmbito da política econômica.
Em todo caso, os setores da direita se mantêm divididos, existindo duas cabeças, até agora politicamente enfrentadas, que respondem a grupos de interesses diferentes. Tanto Guillermo Lasso, de forma aberta, como Jaime Nebot, de maneira mais sutil, aspiram à presidência da República no ano de 2021 ou até antes, se forem capazes de forçar o fim antecipado do mandato morenista, um governo sobre o qual visualizam debilidades não existentes no anterior.
Portanto, o governo nacional enfrenta uma situação inédita a partir de agora, a qual consistirá em receber de forma indiscriminada ataques tanto da direita – inclusive meios de comunicação privados e lobbies empresariais como nesta pretendida nova esquerda correísta. Que Lenín Moreno e sua equipe de gestão sejam capazes de fazer frente a tais pressões está por ser visto. De todo modo, a estratégia de um e outro lado já começou, em alguns casos até com apoio internacional, tal como no caso de Correa, que em breve disporá da plataforma televisiva Russian Today (RT), um meio de comunicação sensacionalista a serviço do aparato de propaganda de Vladimir Putin, como ferramenta de ataque ao atual governo.
Das sete perguntas impulsionadas pelo Executivo, as três primeiras tinham relação direta com o correísmo, abordando temas como:
• A supressão de direitos políticos de condenados por corrupção, o que afeta a um número cada vez maior de altos funcionários que formaram parte do núcleo de poder do regime anterior – já há uma dezena de ex-ministros correístas que se encontram imputados em diferentes processos e este número aumentará – e que poderia terminar afetando o próprio Rafael Correa.
• A eliminação da emenda constitucional aprovada na última fase do governo anterior, pela qual implementava a reeleição indefinida nos cargos de gestão pública a partir de 2021, e que permitia a Correa voltar a se apresentar, tal como era sua intenção, no próximo pleito presidencial;
• E a recomposição do Conselho de Participação Cidadã e Controle Social – popularmente conhecido como o quinto poder constitucional – cujos membros designavam parte dos titulares das instituições do país, o que permitiu ao aparato correísta seguir controlando a estrutura do Estado, apesar de o ex-presidente não ocupar mais o cargo máximo.
O que foi o correísmo?
Compreender a situação atual do Equador significa entender o que foi isso que se convencionou chamar de correísmo e porque deixou de ser funcional neste momento para as elites equatorianas.
Desde 1997, a partir do governo de Abdalá Bucaram, o Equador inaugurou uma etapa de crise institucional permanente que fez com que nenhum presidente eleito desde então nas urnas conseguisse terminar o mandato.
Evidentemente, isso gerava grande instabilidade política e se tornou um fator de desequilíbrio importante a respeito de uma política de investimentos que se faziam cada vez mais urgentes e necessárias para a modernização capitalista que o país deveria empreender após a crise financeira de 1999 e 2000.
Com a entrada do presente século, a economia mundial se estabilizou, superando várias e importantes crises sofridas em diversos países do mundo – México e Venezuela (1994), Tailândia, Indonésia, Filipinas, Taiwan, Coreia do Sul (1997), Rússia (1998), Brasil (1999) ou Argentina (2001) – o que permitiu a melhora econômica internacional, com taxas de crescimento de 4% a 6% no começo da década, até a chegada da crise financeira global de 2008.
Da mesma forma, desde 2003 os preços das commodities aumentaram pelos efeitos dos furacões, como o Katrina, em instalações petroleiras; o crescimento na economia; e, particularmente, pelo auge da indústria da construção, que terminou em uma bolha especulativa cuja explosão fez os investidores voltarem suas pautas a mercados especulativos, tais como de ouro e petróleo, causando uma superdemanda artificial, o que fez o preço do óleo cru chegar ao seu ápice de 147,27 dólares o barril, em julho de 2008.
Neste contexto, o óleo cru equatoriano, que depende da cotização do petróleo norte-americano West Texas Intermediate (WTI) – que é o parâmetro de óleo cru nos EUA - e basicamente é vendido tanto pela PetroEcuador como pelas companhias privadas estrangeiras do país, também elevou notavelmente seus preços.
Sendo um país economicamente dependente de tal produto, o crescimento médio do PIB equatoriano durante a primeira década do presente século foi de 4,4%, enquanto durante os dez anos anteriores tal indicador não superou 1,8%. O anterior indica que a partir do ano 2000, a economia equatoriana começou a consolidar em grande medida apoiada pelas condições favoráveis – preço do petróleo e remessas provenientes dos migrantes – gerando-se as condições adequadas para uma modernização tardia do sistema capitalista nacional.
Neste contexto, o setor mais dinâmico do capital nacional entendeu que poderia melhorar suas possibilidades de negócio propiciando um maior nível de consumo nos mercados internos através de certa divisão do excedente petroleiro – não da distribuição da riqueza que continua em mãos de poucos – e a incorporação ao mercado de setores populares mediante o endividamento familiar e financeirização popular (democratização do consumo com base em empréstimos do setor financeiro privado). Este é o papel que fundamentalmente desempenhou o governo de Rafael Correa durante o último período de bonança econômica no Equador.
Ao largo da primeira década do presente século, a maior fatia de participação no PIB da economia nacional foi o consumo privado, o qual representou uma média de 66,6% do PIB, convertendo-se em fator de maior contribuição ao crescimento nacional durante o período prévio à queda de preços do petróleo.
A dinamização da economia nacional tendo como motor o Estado, eixo da política econômica correísta, significou que os setores empresariais e financeiros foram os principais beneficiados em uma ação que carecia de riscos para os investimentos privados, pois se fazia base do erário público.
O respeito demonstrado pelo governo correísta à matriz de acumulação herdada da era neoliberal acarretou na inexistência da mais mínima transformação de caráter estrutural sobre os pilares que fundamentam os eixos constitutivos do poder no Equador; isso, apesar de setores historicamente esquecidos poderem se beneficiar durante o período de bonança de certas políticas assistencialistas, baseadas na transferência do excedente derivado de aprofundamento das políticas extrativistas. De quebra, significou que enquanto se ancorava em um propagandístico discurso soberanista, no interior do país se piorava cada vez mais a dependência econômica internacional dos mercados especulativos globais e se reprimarizassem substancialmente a economia global.
O modelo econômico funcionou e inclusive gozou de amplo apoio popular, milagre econômico diziam, enquanto durou o boom das commodities, indo abaixo toda a engrenagem das políticas sociais e econômicas correístas a partir da queda do preço do óleo cru em 2013.
É a partir de então, quando começam a se deteriorar certos serviços públicos, que a economia nacional se paralisa, o consumo interno cai e os indicadores de diminuição da pobreza e incremento da capacidade aquisitiva por parte dos trabalhadores passa a decair.
Em fevereiro de 2014, o governo do presidente Rafael Correa começaria a sentir o desgaste político de seu mandato, perdendo as eleições seccionais e as principais prefeituras do país para partidos de oposição. Os setores empresariais que em outro momento tinham sido beneficiados pelas políticas correístas, entendem ser hora de diminuir o gasto público, reduzir o volume do Estado e voltar a liberalizar a economia. Ante a nova falta de liquidez do Estado equatoriano, este deixou de ser funcional para seguir dinamizando a economia nacional, de modo que voltou a se colocar em questão a política de subsídios sociais.
O anterior significou incremento das mobilizações populares no conjunto do país e derivou em uma convocatória de greve/mobilização em agosto de 2015, de parte do movimento indígena e do sindicalismo não clientelista, que terminou vergonhosamente reprimida pelas forças de segurança do Estado.
O conflito entre Correa e Moreno
Em tais condições, e em meio a uma agressiva política de endividamento público que derivou na superação do volume atual de dívida externa, com sobras, dos níveis herdados da época neoliberal, o então mandatário equatoriano decidiu não se apresentar às eleições de 2017, mas deixou aberta a porta para uma nova postulação em 2021.
Estrategicamente, o correísmo considerou que era melhor outro mandatário a proceder as políticas econômicas de ajuste já inapelavelmente necessárias ao país, permitindo assim uma regeneração da imagem de Rafael Correa, que estrategicamente voltaria em 2021 para “salvar” o Equador dos programas de ajuste, frutos de um déficit bruto, galopante e insustentável. Assim, em dezembro de 2015, a bancada oficialista aprovou forçosamente uma reforma constitucional que permitia a reeleição do mandatário para o período imediatamente posterior a uma legislatura marcada pela crise econômica herdada da gestão de saída.
Ainda assim, a estratégia para a volta ao poder de Correa passava pela necessidade de seguir controlando o aparato de Estado durante o atual período, bloqueando qualquer possibilidade de fiscalização e auditorias internas que pudesse se fazer sobre um modelo de gestão pública altamente corrupto, que significou durante dez anos a submissão de todos os poderes e órgãos de controle do Estado pelo Executivo.
Isso implicou na necessidade de a Aliança PAIS ganhar em 2017, ficando a maior parte das instituições públicas em mãos de ex-funcionários de provada proximidade com o ex-presidente. A única figura com a qual a Aliança PAIS contava para ganhar tais eleições era Lenin Moreno, que por suas funções de enviado especial do Secretário Geral da ONU sobre a Incapacidade e Acessibilidade residia em Genebra desde 2014, o que implicava no fato de ter se mantido à margem da degradação correísta dos últimos anos.
Devemos nos remeter mais atrás no passado histórico do Equador para encontrar um mandatário que depois de dez anos de gestão continuada do poder terminou seu período com certo respaldo político – apesar da decadência dos últimos anos – como era o caso de Rafael Correa. Apesar da polarização social criada ao redor de sua figura, Correa abandonou a poltrona presidencial ainda sob importante apoio social, fundamentalmente entre os setores populares, os quais reconheciam o impulso a projetos sociais de caráter assistencialista e o investimento realizado durante a última década no âmbito da infraestrutura e modernização do Estado. Ainda assim, foi uma grande concatenação acelerada de erros políticos estratégicos que fizeram com que o ex-mandatário perdesse a hegemonia política ainda mantida no país.
Com a chegada da nova administração de Lenin, o correísmo deixava em postos estratégicos grande parte de sua equipe anterior de gestão. Isso significava que mantinha o controle sobre enorme e desmedido aparato de propaganda governamental, articulado na década passada, tal como se fazia a respeito do controle sobre a produção – sobre a qual o Estado equatoriano tinha notável incidência durante os últimos dez anos – no altar das responsabilidades estabelecidas em torno da figura do vice-presidente da República, Jorge Glas, o principal homem de confiança de Rafael Correa no novo gabinete, que se mantinha como responsável da mudança de matriz produtiva e investimento em megaprojetos.
Mas ao tempo, o correísmo mantinha o controle também sobre a frente política do governo através de figuras como a primeira titular da Secretaria Nacional de Gestão Pública (Paola Pabón) e do conselheiro presidencial (Ricardo Patiño), o principal operador político dentro da Aliança PAIS durante a gestão anterior, tal como fazia a respeito da Assembleia Nacional – o legislativo equatoriano – através de seus operadores na bancada majoritária da Aliança PAIS.
Não contente, Rafael Correa controlava também, mediante o Conselho de Participação Cidadã e Controle Social, os órgãos de fiscalização e controle do aparato de Estado, cuja designação de responsável respondia integralmente a personalidades afinadas ao ex-presidente. Isso ocorreu em instituições como o Conselho Nacional Eleitoral, a Corte Constitucional, a Controladoria Geral do Estado, a Procuradoria Geral do Estado, o Tribunal Contencioso Eleitoral, o Conselho do Judiciário ou a Defensoria do Povo, entre outros.
Apesar das tensões entre Lenin Moreno e a ala dura correísta serem palpáveis, desde esse mesmo momento, da investidura do atual presidente da República, em 24 de maio passado, momento em que a nova administração descobriu o estado real das finanças públicas, foi a entrega da sede social da CONAIE – estrutura organizativa do movimento indígena e organização social mais importante do país – e o anúncio em julho passado dos primeiros indultos de líderes populares criminalizados durante o regime anterior que geraram reações desqualificadoras de Rafael Correa sobre seu sucessor.
A partir daí os operadores correístas localizados em funções de direção dos distintos meios públicos começam a articular uma campanha contra a imagem do presidente Moreno, aduzindo que o país voltava às políticas do passado e que se estava produzindo uma divisão de poderes com as elites oligárquicas, o que significou que a nova administração morenista nomeasse novos responsáveis em tais meios de comunicação e órgãos. Desta maneira, o ex-presidente Correa perdia o controle do imenso aparato de propaganda e comunicação cuja criação havia sido auspiciada por ele mesmo.
Um mês depois, em inícios de agosto e já com a água no pescoço pelas investigações judiciais que se faziam a respeito da trama da Odebrecht no Equador, o então vice-presidente Jorge Glas – que fora também o segundo mandatário durante a última fase da era Correa – emitia uma extensa carta pública contra o atual chefe de Estado, acusando-o de convergir com os setores politicamente mais reacionários do país. A ruptura de relações entre o presidente Moreno e Jorge Glas acarretou na inabilitação do cargo do segundo, o que trouxe a perda de controle por parte de Rafael Correa sobre o aparato produtivo e os investimentos nos megaprojetos implementados no país. Meses mais tarde e fruto de investigações judiciais anticorrupção, Jorge Glas terminaria ocupando uma cela na prisão número 4 de Quito e destituído do cargo. O correísmo perdia, portanto, também sua incidência no aparato produtivo.
Poucos dias depois do exabrupto vice-presidencial e em vias de solucionar este conflito, o presidente Moreno enviaria a Bruxelas – lugar de residência atual de Correa – os principais operadores políticos de governo, todos eles vinculados durante a gestão anterior do ex-mandatário, com o fim de reconduzir de forma amigável as relações com o ex-presidente. Para surpresa do Executivo, depois da volta a Quito da dita delegação, suas principais cabeças – Ricardo Patiño, Paola Pabón e Virgílio Hernandez – anunciavam em coletiva de imprensa a renúncia a seus cargos no Executivo. Desta maneira, Rafael Correa perdia o controle da frente política governamental.
Destruídos todos os canais de comunicação entre o correísmo e o governo morenista, o presidente Moreno anunciaria nos primeiros meses de outubro passado a convocação de uma Consulta Popular onde algumas perguntas tinham a ver com uma lógica de reforma institucional pós-caudilhista que levasse o país a um caminho de superação do regime anterior. Isso terminaria de dinamitar internamente o partido do governo. Os setores afins ao ex-mandatário determinaram a expulsão, de forma irregular, de Lenin Moreno da Aliança PAIS convocando sem legitimidade jurídica uma convenção nacional da organização política com escasso êxito de adesão. O fato anterior acarretou, depois de uma decisão do Tribunal Contencioso Eleitoral, na perda do correísmo do controle do próprio partido.
O último episódio deste mar de desacertos correístas se deu já em janeiro do presente ano, quando Correa chamou à desfiliação seus seguidores de Aliança PAIS, o que implicou também na perda de controle do legislativo, ficando com apenas 29 parlamentares, enquanto os outros 45 se alinharam a Lenín Moreno.
Em suma, apesar de ser difícil encontrar um ex-presidente que depois de dez anos de gestão mantivesse o nível de apoio de Correa, também é difícil encontrar algum que tenha demonstrado tal capacidade para dilapidá-lo tão rapidamente.
Consulta e pós-consulta
Foi assim que se chegou a 4 de fevereiro, momento em que o correísmo saboreou pela primeira vez uma derrota eleitoral. No fundo, assistimos algo que foi mais além da realização política de uma realidade indiscutível no Equador: o correísmo nunca construiu uma força social e política afim, mas utilizou o aparato de Estado operando sob lógicas clientelistas em favor de um partido de governo e da construção da imagem midiática de Rafael Correa como um grande caudilho populista. Isso implicou em que, após o abandono da cadeira presidencial e da recusa de seus caprichos nas instituições do Estado, seu apoio político diminuísse notavelmente.
A sociedade equatoriana votou pela conformação de um regime de transição que permitia superar a herança implantada pelo governo anterior, gerando as condições para a construção de um novo cenário político após o fim da hegemonia correísta. Foi cortado o cordão umbilical que vinculava o novo governo ao anterior, o que desabilita a narrativa correísta de que Lenin Moreno ocupa a presidência do país graças ao endosso de votos derivado da figura de Rafael Correa.
Após a consulta o país entra em uma nova fase política. Por um lado, o presidente Lenin Moreno ganhou momentaneamente sua disputa com o antecessor, apesar de Correa ainda manter um terço do eleitorado equatoriano. Correa e seus seguidores, após a desfiliação da Aliança PAIS, estão obrigados a conformar um novo movimento político nacional, apesar de a popularidade de seu líder estar em decadência. Correa, consciente de que o setor de antigos líderes da Aliança PAIS que o acompanham nesta nova aventura acrescentam realmente pouco, dada a má imagem diante da sociedade, está obrigado a liderar pessoalmente a construção do novo partido. Será uma tarefa urgente e nada fácil para o neocorreísmo criar uma nova figura política que tenha chances de disputar a presidência da República em 2021.
Por sua parte, a vontade de tal tendência é ocupar o espaço político da esquerda equatoriana, algo que já fizeram em 2006, apesar dos desencontros entre seu discurso e sua prática. Conseguir tal objetivo passa por bloquear qualquer possibilidade de construção de alternativas políticas no campo popular, algo urgentemente necessário para um país que sofre de uma esquerda cujo discurso político se encontra sem capacidade de sintonia com a sociedade, onde não existe geração de novas lideranças, e que se vê carente de construir uma proposta convincente para um novo modelo de sociedade e país.
Apesar de ser certo que a esquerda política e social equatoriana foi fracionada, em muitos casos cooptada e até perseguida pelo regime correísta durante os últimos dez anos, também é certo que existe uma incapacidade política por parte de sua endogâmica dirigência para se reinventar e reposicionar, com um discurso adaptado ao momento atual do país. O mero fato de que grande parte de tal esquerda apoiou em sua lógica anticorreísta a candidatura do conservador Guillermo Lasso no segundo turno das últimas eleições presidenciais é uma demonstração palpável de sua desorientação política e descrédito do que atualmente gozam na cidadania equatoriana. Nas fileiras conservadoras, as forças políticas que até o momento decidiram não fazer oposição política contumaz ao atual governo mudaram de atitude.
A proximidade de eleições seccionais, daqui um ano, faz as organizações políticas da direita voltarem a assumir protagonismo depois de uma aliança antinatural que permitiu a sensibilidades ideológicas muito diferentes um pacto de não agressão em troca de trabalharem, todos juntos, pelo Sim nesta consulta, em nome da finalidade de enterrar politicamente o correísmo.
Meios de comunicação, setores empresariais e forças políticas conservadoras já anunciaram mudanças sobre sua ação diante do governo de Lenín Moreno, o que significará o aumento da pressão política e possivelmente de manifestações de rua, no sentido de que o governo adote posições mais reacionárias fundamentalmente no âmbito da política econômica.
Em todo caso, os setores da direita se mantêm divididos, existindo duas cabeças, até agora politicamente enfrentadas, que respondem a grupos de interesses diferentes. Tanto Guillermo Lasso, de forma aberta, como Jaime Nebot, de maneira mais sutil, aspiram à presidência da República no ano de 2021 ou até antes, se forem capazes de forçar o fim antecipado do mandato morenista, um governo sobre o qual visualizam debilidades não existentes no anterior.
Portanto, o governo nacional enfrenta uma situação inédita a partir de agora, a qual consistirá em receber de forma indiscriminada ataques tanto da direita – inclusive meios de comunicação privados e lobbies empresariais como nesta pretendida nova esquerda correísta. Que Lenín Moreno e sua equipe de gestão sejam capazes de fazer frente a tais pressões está por ser visto. De todo modo, a estratégia de um e outro lado já começou, em alguns casos até com apoio internacional, tal como no caso de Correa, que em breve disporá da plataforma televisiva Russian Today (RT), um meio de comunicação sensacionalista a serviço do aparato de propaganda de Vladimir Putin, como ferramenta de ataque ao atual governo.
Em 4 de fevereiro o
povo equatoriano decidiu terminar com a hegemonia correísta que dominou
o país nos últimos 11 anos. Dois de cada três cidadãos votaram a favor
das perguntas da Consulta Popular impulsionada pelo Governo Nacional, em
uma lógica de disputa auspiciada pelo ex-mandatário Rafael Correa,
produzindo-se pela primeira vez na história uma rejeição cidadã
majoritária aos seus postulados políticos. Até então – mediante
consultas populares, plebiscitos, referendos – o ex-presidente Correa
havia chegado a acumular em apenas dez anos doze vitórias consecutivas
nas urnas.
Das sete perguntas impulsionadas pelo Executivo, as três primeiras tinham relação direta com o correísmo, abordando temas como:
• A supressão de direitos políticos de condenados por corrupção, o que afeta a um número cada vez maior de altos funcionários que formaram parte do núcleo de poder do regime anterior – já há uma dezena de ex-ministros correístas que se encontram imputados em diferentes processos e este número aumentará – e que poderia terminar afetando o próprio Rafael Correa.
• A eliminação da emenda constitucional aprovada na última fase do governo anterior, pela qual implementava a reeleição indefinida nos cargos de gestão pública a partir de 2021, e que permitia a Correa voltar a se apresentar, tal como era sua intenção, no próximo pleito presidencial;
• E a recomposição do Conselho de Participação Cidadã e Controle Social – popularmente conhecido como o quinto poder constitucional – cujos membros designavam parte dos titulares das instituições do país, o que permitiu ao aparato correísta seguir controlando a estrutura do Estado, apesar de o ex-presidente não ocupar mais o cargo máximo.
O que foi o correísmo?
Compreender a situação atual do Equador significa entender o que foi isso que se convencionou chamar de correísmo e porque deixou de ser funcional neste momento para as elites equatorianas.
Desde 1997, a partir do governo de Abdalá Bucaram, o Equador inaugurou uma etapa de crise institucional permanente que fez com que nenhum presidente eleito desde então nas urnas conseguisse terminar o mandato.
Evidentemente, isso gerava grande instabilidade política e se tornou um fator de desequilíbrio importante a respeito de uma política de investimentos que se faziam cada vez mais urgentes e necessárias para a modernização capitalista que o país deveria empreender após a crise financeira de 1999 e 2000.
Com a entrada do presente século, a economia mundial se estabilizou, superando várias e importantes crises sofridas em diversos países do mundo – México e Venezuela (1994), Tailândia, Indonésia, Filipinas, Taiwan, Coreia do Sul (1997), Rússia (1998), Brasil (1999) ou Argentina (2001) – o que permitiu a melhora econômica internacional, com taxas de crescimento de 4% a 6% no começo da década, até a chegada da crise financeira global de 2008.
Da mesma forma, desde 2003 os preços das commodities aumentaram pelos efeitos dos furacões, como o Katrina, em instalações petroleiras; o crescimento na economia; e, particularmente, pelo auge da indústria da construção, que terminou em uma bolha especulativa cuja explosão fez os investidores voltarem suas pautas a mercados especulativos, tais como de ouro e petróleo, causando uma superdemanda artificial, o que fez o preço do óleo cru chegar ao seu ápice de 147,27 dólares o barril, em julho de 2008.
Neste contexto, o óleo cru equatoriano, que depende da cotização do petróleo norte-americano West Texas Intermediate (WTI) – que é o parâmetro de óleo cru nos EUA - e basicamente é vendido tanto pela PetroEcuador como pelas companhias privadas estrangeiras do país, também elevou notavelmente seus preços.
Sendo um país economicamente dependente de tal produto, o crescimento médio do PIB equatoriano durante a primeira década do presente século foi de 4,4%, enquanto durante os dez anos anteriores tal indicador não superou 1,8%. O anterior indica que a partir do ano 2000, a economia equatoriana começou a consolidar em grande medida apoiada pelas condições favoráveis – preço do petróleo e remessas provenientes dos migrantes – gerando-se as condições adequadas para uma modernização tardia do sistema capitalista nacional.
Neste contexto, o setor mais dinâmico do capital nacional entendeu que poderia melhorar suas possibilidades de negócio propiciando um maior nível de consumo nos mercados internos através de certa divisão do excedente petroleiro – não da distribuição da riqueza que continua em mãos de poucos – e a incorporação ao mercado de setores populares mediante o endividamento familiar e financeirização popular (democratização do consumo com base em empréstimos do setor financeiro privado). Este é o papel que fundamentalmente desempenhou o governo de Rafael Correa durante o último período de bonança econômica no Equador.
Ao largo da primeira década do presente século, a maior fatia de participação no PIB da economia nacional foi o consumo privado, o qual representou uma média de 66,6% do PIB, convertendo-se em fator de maior contribuição ao crescimento nacional durante o período prévio à queda de preços do petróleo.
A dinamização da economia nacional tendo como motor o Estado, eixo da política econômica correísta, significou que os setores empresariais e financeiros foram os principais beneficiados em uma ação que carecia de riscos para os investimentos privados, pois se fazia base do erário público.
O respeito demonstrado pelo governo correísta à matriz de acumulação herdada da era neoliberal acarretou na inexistência da mais mínima transformação de caráter estrutural sobre os pilares que fundamentam os eixos constitutivos do poder no Equador; isso, apesar de setores historicamente esquecidos poderem se beneficiar durante o período de bonança de certas políticas assistencialistas, baseadas na transferência do excedente derivado de aprofundamento das políticas extrativistas. De quebra, significou que enquanto se ancorava em um propagandístico discurso soberanista, no interior do país se piorava cada vez mais a dependência econômica internacional dos mercados especulativos globais e se reprimarizassem substancialmente a economia global.
O modelo econômico funcionou e inclusive gozou de amplo apoio popular, milagre econômico diziam, enquanto durou o boom das commodities, indo abaixo toda a engrenagem das políticas sociais e econômicas correístas a partir da queda do preço do óleo cru em 2013.
É a partir de então, quando começam a se deteriorar certos serviços públicos, que a economia nacional se paralisa, o consumo interno cai e os indicadores de diminuição da pobreza e incremento da capacidade aquisitiva por parte dos trabalhadores passa a decair.
Em fevereiro de 2014, o governo do presidente Rafael Correa começaria a sentir o desgaste político de seu mandato, perdendo as eleições seccionais e as principais prefeituras do país para partidos de oposição. Os setores empresariais que em outro momento tinham sido beneficiados pelas políticas correístas, entendem ser hora de diminuir o gasto público, reduzir o volume do Estado e voltar a liberalizar a economia. Ante a nova falta de liquidez do Estado equatoriano, este deixou de ser funcional para seguir dinamizando a economia nacional, de modo que voltou a se colocar em questão a política de subsídios sociais.
O anterior significou incremento das mobilizações populares no conjunto do país e derivou em uma convocatória de greve/mobilização em agosto de 2015, de parte do movimento indígena e do sindicalismo não clientelista, que terminou vergonhosamente reprimida pelas forças de segurança do Estado.
O conflito entre Correa e Moreno
Em tais condições, e em meio a uma agressiva política de endividamento público que derivou na superação do volume atual de dívida externa, com sobras, dos níveis herdados da época neoliberal, o então mandatário equatoriano decidiu não se apresentar às eleições de 2017, mas deixou aberta a porta para uma nova postulação em 2021.
Estrategicamente, o correísmo considerou que era melhor outro mandatário a proceder as políticas econômicas de ajuste já inapelavelmente necessárias ao país, permitindo assim uma regeneração da imagem de Rafael Correa, que estrategicamente voltaria em 2021 para “salvar” o Equador dos programas de ajuste, frutos de um déficit bruto, galopante e insustentável. Assim, em dezembro de 2015, a bancada oficialista aprovou forçosamente uma reforma constitucional que permitia a reeleição do mandatário para o período imediatamente posterior a uma legislatura marcada pela crise econômica herdada da gestão de saída.
Ainda assim, a estratégia para a volta ao poder de Correa passava pela necessidade de seguir controlando o aparato de Estado durante o atual período, bloqueando qualquer possibilidade de fiscalização e auditorias internas que pudesse se fazer sobre um modelo de gestão pública altamente corrupto, que significou durante dez anos a submissão de todos os poderes e órgãos de controle do Estado pelo Executivo.
Isso implicou na necessidade de a Aliança PAIS ganhar em 2017, ficando a maior parte das instituições públicas em mãos de ex-funcionários de provada proximidade com o ex-presidente. A única figura com a qual a Aliança PAIS contava para ganhar tais eleições era Lenin Moreno, que por suas funções de enviado especial do Secretário Geral da ONU sobre a Incapacidade e Acessibilidade residia em Genebra desde 2014, o que implicava no fato de ter se mantido à margem da degradação correísta dos últimos anos.
Devemos nos remeter mais atrás no passado histórico do Equador para encontrar um mandatário que depois de dez anos de gestão continuada do poder terminou seu período com certo respaldo político – apesar da decadência dos últimos anos – como era o caso de Rafael Correa. Apesar da polarização social criada ao redor de sua figura, Correa abandonou a poltrona presidencial ainda sob importante apoio social, fundamentalmente entre os setores populares, os quais reconheciam o impulso a projetos sociais de caráter assistencialista e o investimento realizado durante a última década no âmbito da infraestrutura e modernização do Estado. Ainda assim, foi uma grande concatenação acelerada de erros políticos estratégicos que fizeram com que o ex-mandatário perdesse a hegemonia política ainda mantida no país.
Com a chegada da nova administração de Lenin, o correísmo deixava em postos estratégicos grande parte de sua equipe anterior de gestão. Isso significava que mantinha o controle sobre enorme e desmedido aparato de propaganda governamental, articulado na década passada, tal como se fazia a respeito do controle sobre a produção – sobre a qual o Estado equatoriano tinha notável incidência durante os últimos dez anos – no altar das responsabilidades estabelecidas em torno da figura do vice-presidente da República, Jorge Glas, o principal homem de confiança de Rafael Correa no novo gabinete, que se mantinha como responsável da mudança de matriz produtiva e investimento em megaprojetos.
Mas ao tempo, o correísmo mantinha o controle também sobre a frente política do governo através de figuras como a primeira titular da Secretaria Nacional de Gestão Pública (Paola Pabón) e do conselheiro presidencial (Ricardo Patiño), o principal operador político dentro da Aliança PAIS durante a gestão anterior, tal como fazia a respeito da Assembleia Nacional – o legislativo equatoriano – através de seus operadores na bancada majoritária da Aliança PAIS.
Não contente, Rafael Correa controlava também, mediante o Conselho de Participação Cidadã e Controle Social, os órgãos de fiscalização e controle do aparato de Estado, cuja designação de responsável respondia integralmente a personalidades afinadas ao ex-presidente. Isso ocorreu em instituições como o Conselho Nacional Eleitoral, a Corte Constitucional, a Controladoria Geral do Estado, a Procuradoria Geral do Estado, o Tribunal Contencioso Eleitoral, o Conselho do Judiciário ou a Defensoria do Povo, entre outros.
Apesar das tensões entre Lenin Moreno e a ala dura correísta serem palpáveis, desde esse mesmo momento, da investidura do atual presidente da República, em 24 de maio passado, momento em que a nova administração descobriu o estado real das finanças públicas, foi a entrega da sede social da CONAIE – estrutura organizativa do movimento indígena e organização social mais importante do país – e o anúncio em julho passado dos primeiros indultos de líderes populares criminalizados durante o regime anterior que geraram reações desqualificadoras de Rafael Correa sobre seu sucessor.
A partir daí os operadores correístas localizados em funções de direção dos distintos meios públicos começam a articular uma campanha contra a imagem do presidente Moreno, aduzindo que o país voltava às políticas do passado e que se estava produzindo uma divisão de poderes com as elites oligárquicas, o que significou que a nova administração morenista nomeasse novos responsáveis em tais meios de comunicação e órgãos. Desta maneira, o ex-presidente Correa perdia o controle do imenso aparato de propaganda e comunicação cuja criação havia sido auspiciada por ele mesmo.
Um mês depois, em inícios de agosto e já com a água no pescoço pelas investigações judiciais que se faziam a respeito da trama da Odebrecht no Equador, o então vice-presidente Jorge Glas – que fora também o segundo mandatário durante a última fase da era Correa – emitia uma extensa carta pública contra o atual chefe de Estado, acusando-o de convergir com os setores politicamente mais reacionários do país. A ruptura de relações entre o presidente Moreno e Jorge Glas acarretou na inabilitação do cargo do segundo, o que trouxe a perda de controle por parte de Rafael Correa sobre o aparato produtivo e os investimentos nos megaprojetos implementados no país. Meses mais tarde e fruto de investigações judiciais anticorrupção, Jorge Glas terminaria ocupando uma cela na prisão número 4 de Quito e destituído do cargo. O correísmo perdia, portanto, também sua incidência no aparato produtivo.
Poucos dias depois do exabrupto vice-presidencial e em vias de solucionar este conflito, o presidente Moreno enviaria a Bruxelas – lugar de residência atual de Correa – os principais operadores políticos de governo, todos eles vinculados durante a gestão anterior do ex-mandatário, com o fim de reconduzir de forma amigável as relações com o ex-presidente. Para surpresa do Executivo, depois da volta a Quito da dita delegação, suas principais cabeças – Ricardo Patiño, Paola Pabón e Virgílio Hernandez – anunciavam em coletiva de imprensa a renúncia a seus cargos no Executivo. Desta maneira, Rafael Correa perdia o controle da frente política governamental.
Destruídos todos os canais de comunicação entre o correísmo e o governo morenista, o presidente Moreno anunciaria nos primeiros meses de outubro passado a convocação de uma Consulta Popular onde algumas perguntas tinham a ver com uma lógica de reforma institucional pós-caudilhista que levasse o país a um caminho de superação do regime anterior. Isso terminaria de dinamitar internamente o partido do governo. Os setores afins ao ex-mandatário determinaram a expulsão, de forma irregular, de Lenin Moreno da Aliança PAIS convocando sem legitimidade jurídica uma convenção nacional da organização política com escasso êxito de adesão. O fato anterior acarretou, depois de uma decisão do Tribunal Contencioso Eleitoral, na perda do correísmo do controle do próprio partido.
O último episódio deste mar de desacertos correístas se deu já em janeiro do presente ano, quando Correa chamou à desfiliação seus seguidores de Aliança PAIS, o que implicou também na perda de controle do legislativo, ficando com apenas 29 parlamentares, enquanto os outros 45 se alinharam a Lenín Moreno.
Em suma, apesar de ser difícil encontrar um ex-presidente que depois de dez anos de gestão mantivesse o nível de apoio de Correa, também é difícil encontrar algum que tenha demonstrado tal capacidade para dilapidá-lo tão rapidamente.
Consulta e pós-consulta
Foi assim que se chegou a 4 de fevereiro, momento em que o correísmo saboreou pela primeira vez uma derrota eleitoral. No fundo, assistimos algo que foi mais além da realização política de uma realidade indiscutível no Equador: o correísmo nunca construiu uma força social e política afim, mas utilizou o aparato de Estado operando sob lógicas clientelistas em favor de um partido de governo e da construção da imagem midiática de Rafael Correa como um grande caudilho populista. Isso implicou em que, após o abandono da cadeira presidencial e da recusa de seus caprichos nas instituições do Estado, seu apoio político diminuísse notavelmente.
A sociedade equatoriana votou pela conformação de um regime de transição que permitia superar a herança implantada pelo governo anterior, gerando as condições para a construção de um novo cenário político após o fim da hegemonia correísta. Foi cortado o cordão umbilical que vinculava o novo governo ao anterior, o que desabilita a narrativa correísta de que Lenin Moreno ocupa a presidência do país graças ao endosso de votos derivado da figura de Rafael Correa.
Após a consulta o país entra em uma nova fase política. Por um lado, o presidente Lenin Moreno ganhou momentaneamente sua disputa com o antecessor, apesar de Correa ainda manter um terço do eleitorado equatoriano. Correa e seus seguidores, após a desfiliação da Aliança PAIS, estão obrigados a conformar um novo movimento político nacional, apesar de a popularidade de seu líder estar em decadência. Correa, consciente de que o setor de antigos líderes da Aliança PAIS que o acompanham nesta nova aventura acrescentam realmente pouco, dada a má imagem diante da sociedade, está obrigado a liderar pessoalmente a construção do novo partido. Será uma tarefa urgente e nada fácil para o neocorreísmo criar uma nova figura política que tenha chances de disputar a presidência da República em 2021.
Por sua parte, a vontade de tal tendência é ocupar o espaço político da esquerda equatoriana, algo que já fizeram em 2006, apesar dos desencontros entre seu discurso e sua prática. Conseguir tal objetivo passa por bloquear qualquer possibilidade de construção de alternativas políticas no campo popular, algo urgentemente necessário para um país que sofre de uma esquerda cujo discurso político se encontra sem capacidade de sintonia com a sociedade, onde não existe geração de novas lideranças, e que se vê carente de construir uma proposta convincente para um novo modelo de sociedade e país.
Apesar de ser certo que a esquerda política e social equatoriana foi fracionada, em muitos casos cooptada e até perseguida pelo regime correísta durante os últimos dez anos, também é certo que existe uma incapacidade política por parte de sua endogâmica dirigência para se reinventar e reposicionar, com um discurso adaptado ao momento atual do país. O mero fato de que grande parte de tal esquerda apoiou em sua lógica anticorreísta a candidatura do conservador Guillermo Lasso no segundo turno das últimas eleições presidenciais é uma demonstração palpável de sua desorientação política e descrédito do que atualmente gozam na cidadania equatoriana. Nas fileiras conservadoras, as forças políticas que até o momento decidiram não fazer oposição política contumaz ao atual governo mudaram de atitude.
A proximidade de eleições seccionais, daqui um ano, faz as organizações políticas da direita voltarem a assumir protagonismo depois de uma aliança antinatural que permitiu a sensibilidades ideológicas muito diferentes um pacto de não agressão em troca de trabalharem, todos juntos, pelo Sim nesta consulta, em nome da finalidade de enterrar politicamente o correísmo.
Meios de comunicação, setores empresariais e forças políticas conservadoras já anunciaram mudanças sobre sua ação diante do governo de Lenín Moreno, o que significará o aumento da pressão política e possivelmente de manifestações de rua, no sentido de que o governo adote posições mais reacionárias fundamentalmente no âmbito da política econômica.
Em todo caso, os setores da direita se mantêm divididos, existindo duas cabeças, até agora politicamente enfrentadas, que respondem a grupos de interesses diferentes. Tanto Guillermo Lasso, de forma aberta, como Jaime Nebot, de maneira mais sutil, aspiram à presidência da República no ano de 2021 ou até antes, se forem capazes de forçar o fim antecipado do mandato morenista, um governo sobre o qual visualizam debilidades não existentes no anterior.
Portanto, o governo nacional enfrenta uma situação inédita a partir de agora, a qual consistirá em receber de forma indiscriminada ataques tanto da direita – inclusive meios de comunicação privados e lobbies empresariais como nesta pretendida nova esquerda correísta. Que Lenín Moreno e sua equipe de gestão sejam capazes de fazer frente a tais pressões está por ser visto. De todo modo, a estratégia de um e outro lado já começou, em alguns casos até com apoio internacional, tal como no caso de Correa, que em breve disporá da plataforma televisiva Russian Today (RT), um meio de comunicação sensacionalista a serviço do aparato de propaganda de Vladimir Putin, como ferramenta de ataque ao atual governo.
Das sete perguntas impulsionadas pelo Executivo, as três primeiras tinham relação direta com o correísmo, abordando temas como:
• A supressão de direitos políticos de condenados por corrupção, o que afeta a um número cada vez maior de altos funcionários que formaram parte do núcleo de poder do regime anterior – já há uma dezena de ex-ministros correístas que se encontram imputados em diferentes processos e este número aumentará – e que poderia terminar afetando o próprio Rafael Correa.
• A eliminação da emenda constitucional aprovada na última fase do governo anterior, pela qual implementava a reeleição indefinida nos cargos de gestão pública a partir de 2021, e que permitia a Correa voltar a se apresentar, tal como era sua intenção, no próximo pleito presidencial;
• E a recomposição do Conselho de Participação Cidadã e Controle Social – popularmente conhecido como o quinto poder constitucional – cujos membros designavam parte dos titulares das instituições do país, o que permitiu ao aparato correísta seguir controlando a estrutura do Estado, apesar de o ex-presidente não ocupar mais o cargo máximo.
O que foi o correísmo?
Compreender a situação atual do Equador significa entender o que foi isso que se convencionou chamar de correísmo e porque deixou de ser funcional neste momento para as elites equatorianas.
Desde 1997, a partir do governo de Abdalá Bucaram, o Equador inaugurou uma etapa de crise institucional permanente que fez com que nenhum presidente eleito desde então nas urnas conseguisse terminar o mandato.
Evidentemente, isso gerava grande instabilidade política e se tornou um fator de desequilíbrio importante a respeito de uma política de investimentos que se faziam cada vez mais urgentes e necessárias para a modernização capitalista que o país deveria empreender após a crise financeira de 1999 e 2000.
Com a entrada do presente século, a economia mundial se estabilizou, superando várias e importantes crises sofridas em diversos países do mundo – México e Venezuela (1994), Tailândia, Indonésia, Filipinas, Taiwan, Coreia do Sul (1997), Rússia (1998), Brasil (1999) ou Argentina (2001) – o que permitiu a melhora econômica internacional, com taxas de crescimento de 4% a 6% no começo da década, até a chegada da crise financeira global de 2008.
Da mesma forma, desde 2003 os preços das commodities aumentaram pelos efeitos dos furacões, como o Katrina, em instalações petroleiras; o crescimento na economia; e, particularmente, pelo auge da indústria da construção, que terminou em uma bolha especulativa cuja explosão fez os investidores voltarem suas pautas a mercados especulativos, tais como de ouro e petróleo, causando uma superdemanda artificial, o que fez o preço do óleo cru chegar ao seu ápice de 147,27 dólares o barril, em julho de 2008.
Neste contexto, o óleo cru equatoriano, que depende da cotização do petróleo norte-americano West Texas Intermediate (WTI) – que é o parâmetro de óleo cru nos EUA - e basicamente é vendido tanto pela PetroEcuador como pelas companhias privadas estrangeiras do país, também elevou notavelmente seus preços.
Sendo um país economicamente dependente de tal produto, o crescimento médio do PIB equatoriano durante a primeira década do presente século foi de 4,4%, enquanto durante os dez anos anteriores tal indicador não superou 1,8%. O anterior indica que a partir do ano 2000, a economia equatoriana começou a consolidar em grande medida apoiada pelas condições favoráveis – preço do petróleo e remessas provenientes dos migrantes – gerando-se as condições adequadas para uma modernização tardia do sistema capitalista nacional.
Neste contexto, o setor mais dinâmico do capital nacional entendeu que poderia melhorar suas possibilidades de negócio propiciando um maior nível de consumo nos mercados internos através de certa divisão do excedente petroleiro – não da distribuição da riqueza que continua em mãos de poucos – e a incorporação ao mercado de setores populares mediante o endividamento familiar e financeirização popular (democratização do consumo com base em empréstimos do setor financeiro privado). Este é o papel que fundamentalmente desempenhou o governo de Rafael Correa durante o último período de bonança econômica no Equador.
Ao largo da primeira década do presente século, a maior fatia de participação no PIB da economia nacional foi o consumo privado, o qual representou uma média de 66,6% do PIB, convertendo-se em fator de maior contribuição ao crescimento nacional durante o período prévio à queda de preços do petróleo.
A dinamização da economia nacional tendo como motor o Estado, eixo da política econômica correísta, significou que os setores empresariais e financeiros foram os principais beneficiados em uma ação que carecia de riscos para os investimentos privados, pois se fazia base do erário público.
O respeito demonstrado pelo governo correísta à matriz de acumulação herdada da era neoliberal acarretou na inexistência da mais mínima transformação de caráter estrutural sobre os pilares que fundamentam os eixos constitutivos do poder no Equador; isso, apesar de setores historicamente esquecidos poderem se beneficiar durante o período de bonança de certas políticas assistencialistas, baseadas na transferência do excedente derivado de aprofundamento das políticas extrativistas. De quebra, significou que enquanto se ancorava em um propagandístico discurso soberanista, no interior do país se piorava cada vez mais a dependência econômica internacional dos mercados especulativos globais e se reprimarizassem substancialmente a economia global.
O modelo econômico funcionou e inclusive gozou de amplo apoio popular, milagre econômico diziam, enquanto durou o boom das commodities, indo abaixo toda a engrenagem das políticas sociais e econômicas correístas a partir da queda do preço do óleo cru em 2013.
É a partir de então, quando começam a se deteriorar certos serviços públicos, que a economia nacional se paralisa, o consumo interno cai e os indicadores de diminuição da pobreza e incremento da capacidade aquisitiva por parte dos trabalhadores passa a decair.
Em fevereiro de 2014, o governo do presidente Rafael Correa começaria a sentir o desgaste político de seu mandato, perdendo as eleições seccionais e as principais prefeituras do país para partidos de oposição. Os setores empresariais que em outro momento tinham sido beneficiados pelas políticas correístas, entendem ser hora de diminuir o gasto público, reduzir o volume do Estado e voltar a liberalizar a economia. Ante a nova falta de liquidez do Estado equatoriano, este deixou de ser funcional para seguir dinamizando a economia nacional, de modo que voltou a se colocar em questão a política de subsídios sociais.
O anterior significou incremento das mobilizações populares no conjunto do país e derivou em uma convocatória de greve/mobilização em agosto de 2015, de parte do movimento indígena e do sindicalismo não clientelista, que terminou vergonhosamente reprimida pelas forças de segurança do Estado.
O conflito entre Correa e Moreno
Em tais condições, e em meio a uma agressiva política de endividamento público que derivou na superação do volume atual de dívida externa, com sobras, dos níveis herdados da época neoliberal, o então mandatário equatoriano decidiu não se apresentar às eleições de 2017, mas deixou aberta a porta para uma nova postulação em 2021.
Estrategicamente, o correísmo considerou que era melhor outro mandatário a proceder as políticas econômicas de ajuste já inapelavelmente necessárias ao país, permitindo assim uma regeneração da imagem de Rafael Correa, que estrategicamente voltaria em 2021 para “salvar” o Equador dos programas de ajuste, frutos de um déficit bruto, galopante e insustentável. Assim, em dezembro de 2015, a bancada oficialista aprovou forçosamente uma reforma constitucional que permitia a reeleição do mandatário para o período imediatamente posterior a uma legislatura marcada pela crise econômica herdada da gestão de saída.
Ainda assim, a estratégia para a volta ao poder de Correa passava pela necessidade de seguir controlando o aparato de Estado durante o atual período, bloqueando qualquer possibilidade de fiscalização e auditorias internas que pudesse se fazer sobre um modelo de gestão pública altamente corrupto, que significou durante dez anos a submissão de todos os poderes e órgãos de controle do Estado pelo Executivo.
Isso implicou na necessidade de a Aliança PAIS ganhar em 2017, ficando a maior parte das instituições públicas em mãos de ex-funcionários de provada proximidade com o ex-presidente. A única figura com a qual a Aliança PAIS contava para ganhar tais eleições era Lenin Moreno, que por suas funções de enviado especial do Secretário Geral da ONU sobre a Incapacidade e Acessibilidade residia em Genebra desde 2014, o que implicava no fato de ter se mantido à margem da degradação correísta dos últimos anos.
Devemos nos remeter mais atrás no passado histórico do Equador para encontrar um mandatário que depois de dez anos de gestão continuada do poder terminou seu período com certo respaldo político – apesar da decadência dos últimos anos – como era o caso de Rafael Correa. Apesar da polarização social criada ao redor de sua figura, Correa abandonou a poltrona presidencial ainda sob importante apoio social, fundamentalmente entre os setores populares, os quais reconheciam o impulso a projetos sociais de caráter assistencialista e o investimento realizado durante a última década no âmbito da infraestrutura e modernização do Estado. Ainda assim, foi uma grande concatenação acelerada de erros políticos estratégicos que fizeram com que o ex-mandatário perdesse a hegemonia política ainda mantida no país.
Com a chegada da nova administração de Lenin, o correísmo deixava em postos estratégicos grande parte de sua equipe anterior de gestão. Isso significava que mantinha o controle sobre enorme e desmedido aparato de propaganda governamental, articulado na década passada, tal como se fazia a respeito do controle sobre a produção – sobre a qual o Estado equatoriano tinha notável incidência durante os últimos dez anos – no altar das responsabilidades estabelecidas em torno da figura do vice-presidente da República, Jorge Glas, o principal homem de confiança de Rafael Correa no novo gabinete, que se mantinha como responsável da mudança de matriz produtiva e investimento em megaprojetos.
Mas ao tempo, o correísmo mantinha o controle também sobre a frente política do governo através de figuras como a primeira titular da Secretaria Nacional de Gestão Pública (Paola Pabón) e do conselheiro presidencial (Ricardo Patiño), o principal operador político dentro da Aliança PAIS durante a gestão anterior, tal como fazia a respeito da Assembleia Nacional – o legislativo equatoriano – através de seus operadores na bancada majoritária da Aliança PAIS.
Não contente, Rafael Correa controlava também, mediante o Conselho de Participação Cidadã e Controle Social, os órgãos de fiscalização e controle do aparato de Estado, cuja designação de responsável respondia integralmente a personalidades afinadas ao ex-presidente. Isso ocorreu em instituições como o Conselho Nacional Eleitoral, a Corte Constitucional, a Controladoria Geral do Estado, a Procuradoria Geral do Estado, o Tribunal Contencioso Eleitoral, o Conselho do Judiciário ou a Defensoria do Povo, entre outros.
Apesar das tensões entre Lenin Moreno e a ala dura correísta serem palpáveis, desde esse mesmo momento, da investidura do atual presidente da República, em 24 de maio passado, momento em que a nova administração descobriu o estado real das finanças públicas, foi a entrega da sede social da CONAIE – estrutura organizativa do movimento indígena e organização social mais importante do país – e o anúncio em julho passado dos primeiros indultos de líderes populares criminalizados durante o regime anterior que geraram reações desqualificadoras de Rafael Correa sobre seu sucessor.
A partir daí os operadores correístas localizados em funções de direção dos distintos meios públicos começam a articular uma campanha contra a imagem do presidente Moreno, aduzindo que o país voltava às políticas do passado e que se estava produzindo uma divisão de poderes com as elites oligárquicas, o que significou que a nova administração morenista nomeasse novos responsáveis em tais meios de comunicação e órgãos. Desta maneira, o ex-presidente Correa perdia o controle do imenso aparato de propaganda e comunicação cuja criação havia sido auspiciada por ele mesmo.
Um mês depois, em inícios de agosto e já com a água no pescoço pelas investigações judiciais que se faziam a respeito da trama da Odebrecht no Equador, o então vice-presidente Jorge Glas – que fora também o segundo mandatário durante a última fase da era Correa – emitia uma extensa carta pública contra o atual chefe de Estado, acusando-o de convergir com os setores politicamente mais reacionários do país. A ruptura de relações entre o presidente Moreno e Jorge Glas acarretou na inabilitação do cargo do segundo, o que trouxe a perda de controle por parte de Rafael Correa sobre o aparato produtivo e os investimentos nos megaprojetos implementados no país. Meses mais tarde e fruto de investigações judiciais anticorrupção, Jorge Glas terminaria ocupando uma cela na prisão número 4 de Quito e destituído do cargo. O correísmo perdia, portanto, também sua incidência no aparato produtivo.
Poucos dias depois do exabrupto vice-presidencial e em vias de solucionar este conflito, o presidente Moreno enviaria a Bruxelas – lugar de residência atual de Correa – os principais operadores políticos de governo, todos eles vinculados durante a gestão anterior do ex-mandatário, com o fim de reconduzir de forma amigável as relações com o ex-presidente. Para surpresa do Executivo, depois da volta a Quito da dita delegação, suas principais cabeças – Ricardo Patiño, Paola Pabón e Virgílio Hernandez – anunciavam em coletiva de imprensa a renúncia a seus cargos no Executivo. Desta maneira, Rafael Correa perdia o controle da frente política governamental.
Destruídos todos os canais de comunicação entre o correísmo e o governo morenista, o presidente Moreno anunciaria nos primeiros meses de outubro passado a convocação de uma Consulta Popular onde algumas perguntas tinham a ver com uma lógica de reforma institucional pós-caudilhista que levasse o país a um caminho de superação do regime anterior. Isso terminaria de dinamitar internamente o partido do governo. Os setores afins ao ex-mandatário determinaram a expulsão, de forma irregular, de Lenin Moreno da Aliança PAIS convocando sem legitimidade jurídica uma convenção nacional da organização política com escasso êxito de adesão. O fato anterior acarretou, depois de uma decisão do Tribunal Contencioso Eleitoral, na perda do correísmo do controle do próprio partido.
O último episódio deste mar de desacertos correístas se deu já em janeiro do presente ano, quando Correa chamou à desfiliação seus seguidores de Aliança PAIS, o que implicou também na perda de controle do legislativo, ficando com apenas 29 parlamentares, enquanto os outros 45 se alinharam a Lenín Moreno.
Em suma, apesar de ser difícil encontrar um ex-presidente que depois de dez anos de gestão mantivesse o nível de apoio de Correa, também é difícil encontrar algum que tenha demonstrado tal capacidade para dilapidá-lo tão rapidamente.
Consulta e pós-consulta
Foi assim que se chegou a 4 de fevereiro, momento em que o correísmo saboreou pela primeira vez uma derrota eleitoral. No fundo, assistimos algo que foi mais além da realização política de uma realidade indiscutível no Equador: o correísmo nunca construiu uma força social e política afim, mas utilizou o aparato de Estado operando sob lógicas clientelistas em favor de um partido de governo e da construção da imagem midiática de Rafael Correa como um grande caudilho populista. Isso implicou em que, após o abandono da cadeira presidencial e da recusa de seus caprichos nas instituições do Estado, seu apoio político diminuísse notavelmente.
A sociedade equatoriana votou pela conformação de um regime de transição que permitia superar a herança implantada pelo governo anterior, gerando as condições para a construção de um novo cenário político após o fim da hegemonia correísta. Foi cortado o cordão umbilical que vinculava o novo governo ao anterior, o que desabilita a narrativa correísta de que Lenin Moreno ocupa a presidência do país graças ao endosso de votos derivado da figura de Rafael Correa.
Após a consulta o país entra em uma nova fase política. Por um lado, o presidente Lenin Moreno ganhou momentaneamente sua disputa com o antecessor, apesar de Correa ainda manter um terço do eleitorado equatoriano. Correa e seus seguidores, após a desfiliação da Aliança PAIS, estão obrigados a conformar um novo movimento político nacional, apesar de a popularidade de seu líder estar em decadência. Correa, consciente de que o setor de antigos líderes da Aliança PAIS que o acompanham nesta nova aventura acrescentam realmente pouco, dada a má imagem diante da sociedade, está obrigado a liderar pessoalmente a construção do novo partido. Será uma tarefa urgente e nada fácil para o neocorreísmo criar uma nova figura política que tenha chances de disputar a presidência da República em 2021.
Por sua parte, a vontade de tal tendência é ocupar o espaço político da esquerda equatoriana, algo que já fizeram em 2006, apesar dos desencontros entre seu discurso e sua prática. Conseguir tal objetivo passa por bloquear qualquer possibilidade de construção de alternativas políticas no campo popular, algo urgentemente necessário para um país que sofre de uma esquerda cujo discurso político se encontra sem capacidade de sintonia com a sociedade, onde não existe geração de novas lideranças, e que se vê carente de construir uma proposta convincente para um novo modelo de sociedade e país.
Apesar de ser certo que a esquerda política e social equatoriana foi fracionada, em muitos casos cooptada e até perseguida pelo regime correísta durante os últimos dez anos, também é certo que existe uma incapacidade política por parte de sua endogâmica dirigência para se reinventar e reposicionar, com um discurso adaptado ao momento atual do país. O mero fato de que grande parte de tal esquerda apoiou em sua lógica anticorreísta a candidatura do conservador Guillermo Lasso no segundo turno das últimas eleições presidenciais é uma demonstração palpável de sua desorientação política e descrédito do que atualmente gozam na cidadania equatoriana. Nas fileiras conservadoras, as forças políticas que até o momento decidiram não fazer oposição política contumaz ao atual governo mudaram de atitude.
A proximidade de eleições seccionais, daqui um ano, faz as organizações políticas da direita voltarem a assumir protagonismo depois de uma aliança antinatural que permitiu a sensibilidades ideológicas muito diferentes um pacto de não agressão em troca de trabalharem, todos juntos, pelo Sim nesta consulta, em nome da finalidade de enterrar politicamente o correísmo.
Meios de comunicação, setores empresariais e forças políticas conservadoras já anunciaram mudanças sobre sua ação diante do governo de Lenín Moreno, o que significará o aumento da pressão política e possivelmente de manifestações de rua, no sentido de que o governo adote posições mais reacionárias fundamentalmente no âmbito da política econômica.
Em todo caso, os setores da direita se mantêm divididos, existindo duas cabeças, até agora politicamente enfrentadas, que respondem a grupos de interesses diferentes. Tanto Guillermo Lasso, de forma aberta, como Jaime Nebot, de maneira mais sutil, aspiram à presidência da República no ano de 2021 ou até antes, se forem capazes de forçar o fim antecipado do mandato morenista, um governo sobre o qual visualizam debilidades não existentes no anterior.
Portanto, o governo nacional enfrenta uma situação inédita a partir de agora, a qual consistirá em receber de forma indiscriminada ataques tanto da direita – inclusive meios de comunicação privados e lobbies empresariais como nesta pretendida nova esquerda correísta. Que Lenín Moreno e sua equipe de gestão sejam capazes de fazer frente a tais pressões está por ser visto. De todo modo, a estratégia de um e outro lado já começou, em alguns casos até com apoio internacional, tal como no caso de Correa, que em breve disporá da plataforma televisiva Russian Today (RT), um meio de comunicação sensacionalista a serviço do aparato de propaganda de Vladimir Putin, como ferramenta de ataque ao atual governo.
Em 4 de fevereiro o
povo equatoriano decidiu terminar com a hegemonia correísta que dominou
o país nos últimos 11 anos. Dois de cada três cidadãos votaram a favor
das perguntas da Consulta Popular impulsionada pelo Governo Nacional, em
uma lógica de disputa auspiciada pelo ex-mandatário Rafael Correa,
produzindo-se pela primeira vez na história uma rejeição cidadã
majoritária aos seus postulados políticos. Até então – mediante
consultas populares, plebiscitos, referendos – o ex-presidente Correa
havia chegado a acumular em apenas dez anos doze vitórias consecutivas
nas urnas.
Das sete perguntas impulsionadas pelo Executivo, as três primeiras tinham relação direta com o correísmo, abordando temas como:
• A supressão de direitos políticos de condenados por corrupção, o que afeta a um número cada vez maior de altos funcionários que formaram parte do núcleo de poder do regime anterior – já há uma dezena de ex-ministros correístas que se encontram imputados em diferentes processos e este número aumentará – e que poderia terminar afetando o próprio Rafael Correa.
• A eliminação da emenda constitucional aprovada na última fase do governo anterior, pela qual implementava a reeleição indefinida nos cargos de gestão pública a partir de 2021, e que permitia a Correa voltar a se apresentar, tal como era sua intenção, no próximo pleito presidencial;
• E a recomposição do Conselho de Participação Cidadã e Controle Social – popularmente conhecido como o quinto poder constitucional – cujos membros designavam parte dos titulares das instituições do país, o que permitiu ao aparato correísta seguir controlando a estrutura do Estado, apesar de o ex-presidente não ocupar mais o cargo máximo.
O que foi o correísmo?
Compreender a situação atual do Equador significa entender o que foi isso que se convencionou chamar de correísmo e porque deixou de ser funcional neste momento para as elites equatorianas.
Desde 1997, a partir do governo de Abdalá Bucaram, o Equador inaugurou uma etapa de crise institucional permanente que fez com que nenhum presidente eleito desde então nas urnas conseguisse terminar o mandato.
Evidentemente, isso gerava grande instabilidade política e se tornou um fator de desequilíbrio importante a respeito de uma política de investimentos que se faziam cada vez mais urgentes e necessárias para a modernização capitalista que o país deveria empreender após a crise financeira de 1999 e 2000.
Com a entrada do presente século, a economia mundial se estabilizou, superando várias e importantes crises sofridas em diversos países do mundo – México e Venezuela (1994), Tailândia, Indonésia, Filipinas, Taiwan, Coreia do Sul (1997), Rússia (1998), Brasil (1999) ou Argentina (2001) – o que permitiu a melhora econômica internacional, com taxas de crescimento de 4% a 6% no começo da década, até a chegada da crise financeira global de 2008.
Da mesma forma, desde 2003 os preços das commodities aumentaram pelos efeitos dos furacões, como o Katrina, em instalações petroleiras; o crescimento na economia; e, particularmente, pelo auge da indústria da construção, que terminou em uma bolha especulativa cuja explosão fez os investidores voltarem suas pautas a mercados especulativos, tais como de ouro e petróleo, causando uma superdemanda artificial, o que fez o preço do óleo cru chegar ao seu ápice de 147,27 dólares o barril, em julho de 2008.
Neste contexto, o óleo cru equatoriano, que depende da cotização do petróleo norte-americano West Texas Intermediate (WTI) – que é o parâmetro de óleo cru nos EUA - e basicamente é vendido tanto pela PetroEcuador como pelas companhias privadas estrangeiras do país, também elevou notavelmente seus preços.
Sendo um país economicamente dependente de tal produto, o crescimento médio do PIB equatoriano durante a primeira década do presente século foi de 4,4%, enquanto durante os dez anos anteriores tal indicador não superou 1,8%. O anterior indica que a partir do ano 2000, a economia equatoriana começou a consolidar em grande medida apoiada pelas condições favoráveis – preço do petróleo e remessas provenientes dos migrantes – gerando-se as condições adequadas para uma modernização tardia do sistema capitalista nacional.
Neste contexto, o setor mais dinâmico do capital nacional entendeu que poderia melhorar suas possibilidades de negócio propiciando um maior nível de consumo nos mercados internos através de certa divisão do excedente petroleiro – não da distribuição da riqueza que continua em mãos de poucos – e a incorporação ao mercado de setores populares mediante o endividamento familiar e financeirização popular (democratização do consumo com base em empréstimos do setor financeiro privado). Este é o papel que fundamentalmente desempenhou o governo de Rafael Correa durante o último período de bonança econômica no Equador.
Ao largo da primeira década do presente século, a maior fatia de participação no PIB da economia nacional foi o consumo privado, o qual representou uma média de 66,6% do PIB, convertendo-se em fator de maior contribuição ao crescimento nacional durante o período prévio à queda de preços do petróleo.
A dinamização da economia nacional tendo como motor o Estado, eixo da política econômica correísta, significou que os setores empresariais e financeiros foram os principais beneficiados em uma ação que carecia de riscos para os investimentos privados, pois se fazia base do erário público.
O respeito demonstrado pelo governo correísta à matriz de acumulação herdada da era neoliberal acarretou na inexistência da mais mínima transformação de caráter estrutural sobre os pilares que fundamentam os eixos constitutivos do poder no Equador; isso, apesar de setores historicamente esquecidos poderem se beneficiar durante o período de bonança de certas políticas assistencialistas, baseadas na transferência do excedente derivado de aprofundamento das políticas extrativistas. De quebra, significou que enquanto se ancorava em um propagandístico discurso soberanista, no interior do país se piorava cada vez mais a dependência econômica internacional dos mercados especulativos globais e se reprimarizassem substancialmente a economia global.
O modelo econômico funcionou e inclusive gozou de amplo apoio popular, milagre econômico diziam, enquanto durou o boom das commodities, indo abaixo toda a engrenagem das políticas sociais e econômicas correístas a partir da queda do preço do óleo cru em 2013.
É a partir de então, quando começam a se deteriorar certos serviços públicos, que a economia nacional se paralisa, o consumo interno cai e os indicadores de diminuição da pobreza e incremento da capacidade aquisitiva por parte dos trabalhadores passa a decair.
Em fevereiro de 2014, o governo do presidente Rafael Correa começaria a sentir o desgaste político de seu mandato, perdendo as eleições seccionais e as principais prefeituras do país para partidos de oposição. Os setores empresariais que em outro momento tinham sido beneficiados pelas políticas correístas, entendem ser hora de diminuir o gasto público, reduzir o volume do Estado e voltar a liberalizar a economia. Ante a nova falta de liquidez do Estado equatoriano, este deixou de ser funcional para seguir dinamizando a economia nacional, de modo que voltou a se colocar em questão a política de subsídios sociais.
O anterior significou incremento das mobilizações populares no conjunto do país e derivou em uma convocatória de greve/mobilização em agosto de 2015, de parte do movimento indígena e do sindicalismo não clientelista, que terminou vergonhosamente reprimida pelas forças de segurança do Estado.
O conflito entre Correa e Moreno
Em tais condições, e em meio a uma agressiva política de endividamento público que derivou na superação do volume atual de dívida externa, com sobras, dos níveis herdados da época neoliberal, o então mandatário equatoriano decidiu não se apresentar às eleições de 2017, mas deixou aberta a porta para uma nova postulação em 2021.
Estrategicamente, o correísmo considerou que era melhor outro mandatário a proceder as políticas econômicas de ajuste já inapelavelmente necessárias ao país, permitindo assim uma regeneração da imagem de Rafael Correa, que estrategicamente voltaria em 2021 para “salvar” o Equador dos programas de ajuste, frutos de um déficit bruto, galopante e insustentável. Assim, em dezembro de 2015, a bancada oficialista aprovou forçosamente uma reforma constitucional que permitia a reeleição do mandatário para o período imediatamente posterior a uma legislatura marcada pela crise econômica herdada da gestão de saída.
Ainda assim, a estratégia para a volta ao poder de Correa passava pela necessidade de seguir controlando o aparato de Estado durante o atual período, bloqueando qualquer possibilidade de fiscalização e auditorias internas que pudesse se fazer sobre um modelo de gestão pública altamente corrupto, que significou durante dez anos a submissão de todos os poderes e órgãos de controle do Estado pelo Executivo.
Isso implicou na necessidade de a Aliança PAIS ganhar em 2017, ficando a maior parte das instituições públicas em mãos de ex-funcionários de provada proximidade com o ex-presidente. A única figura com a qual a Aliança PAIS contava para ganhar tais eleições era Lenin Moreno, que por suas funções de enviado especial do Secretário Geral da ONU sobre a Incapacidade e Acessibilidade residia em Genebra desde 2014, o que implicava no fato de ter se mantido à margem da degradação correísta dos últimos anos.
Devemos nos remeter mais atrás no passado histórico do Equador para encontrar um mandatário que depois de dez anos de gestão continuada do poder terminou seu período com certo respaldo político – apesar da decadência dos últimos anos – como era o caso de Rafael Correa. Apesar da polarização social criada ao redor de sua figura, Correa abandonou a poltrona presidencial ainda sob importante apoio social, fundamentalmente entre os setores populares, os quais reconheciam o impulso a projetos sociais de caráter assistencialista e o investimento realizado durante a última década no âmbito da infraestrutura e modernização do Estado. Ainda assim, foi uma grande concatenação acelerada de erros políticos estratégicos que fizeram com que o ex-mandatário perdesse a hegemonia política ainda mantida no país.
Com a chegada da nova administração de Lenin, o correísmo deixava em postos estratégicos grande parte de sua equipe anterior de gestão. Isso significava que mantinha o controle sobre enorme e desmedido aparato de propaganda governamental, articulado na década passada, tal como se fazia a respeito do controle sobre a produção – sobre a qual o Estado equatoriano tinha notável incidência durante os últimos dez anos – no altar das responsabilidades estabelecidas em torno da figura do vice-presidente da República, Jorge Glas, o principal homem de confiança de Rafael Correa no novo gabinete, que se mantinha como responsável da mudança de matriz produtiva e investimento em megaprojetos.
Mas ao tempo, o correísmo mantinha o controle também sobre a frente política do governo através de figuras como a primeira titular da Secretaria Nacional de Gestão Pública (Paola Pabón) e do conselheiro presidencial (Ricardo Patiño), o principal operador político dentro da Aliança PAIS durante a gestão anterior, tal como fazia a respeito da Assembleia Nacional – o legislativo equatoriano – através de seus operadores na bancada majoritária da Aliança PAIS.
Não contente, Rafael Correa controlava também, mediante o Conselho de Participação Cidadã e Controle Social, os órgãos de fiscalização e controle do aparato de Estado, cuja designação de responsável respondia integralmente a personalidades afinadas ao ex-presidente. Isso ocorreu em instituições como o Conselho Nacional Eleitoral, a Corte Constitucional, a Controladoria Geral do Estado, a Procuradoria Geral do Estado, o Tribunal Contencioso Eleitoral, o Conselho do Judiciário ou a Defensoria do Povo, entre outros.
Apesar das tensões entre Lenin Moreno e a ala dura correísta serem palpáveis, desde esse mesmo momento, da investidura do atual presidente da República, em 24 de maio passado, momento em que a nova administração descobriu o estado real das finanças públicas, foi a entrega da sede social da CONAIE – estrutura organizativa do movimento indígena e organização social mais importante do país – e o anúncio em julho passado dos primeiros indultos de líderes populares criminalizados durante o regime anterior que geraram reações desqualificadoras de Rafael Correa sobre seu sucessor.
A partir daí os operadores correístas localizados em funções de direção dos distintos meios públicos começam a articular uma campanha contra a imagem do presidente Moreno, aduzindo que o país voltava às políticas do passado e que se estava produzindo uma divisão de poderes com as elites oligárquicas, o que significou que a nova administração morenista nomeasse novos responsáveis em tais meios de comunicação e órgãos. Desta maneira, o ex-presidente Correa perdia o controle do imenso aparato de propaganda e comunicação cuja criação havia sido auspiciada por ele mesmo.
Um mês depois, em inícios de agosto e já com a água no pescoço pelas investigações judiciais que se faziam a respeito da trama da Odebrecht no Equador, o então vice-presidente Jorge Glas – que fora também o segundo mandatário durante a última fase da era Correa – emitia uma extensa carta pública contra o atual chefe de Estado, acusando-o de convergir com os setores politicamente mais reacionários do país. A ruptura de relações entre o presidente Moreno e Jorge Glas acarretou na inabilitação do cargo do segundo, o que trouxe a perda de controle por parte de Rafael Correa sobre o aparato produtivo e os investimentos nos megaprojetos implementados no país. Meses mais tarde e fruto de investigações judiciais anticorrupção, Jorge Glas terminaria ocupando uma cela na prisão número 4 de Quito e destituído do cargo. O correísmo perdia, portanto, também sua incidência no aparato produtivo.
Poucos dias depois do exabrupto vice-presidencial e em vias de solucionar este conflito, o presidente Moreno enviaria a Bruxelas – lugar de residência atual de Correa – os principais operadores políticos de governo, todos eles vinculados durante a gestão anterior do ex-mandatário, com o fim de reconduzir de forma amigável as relações com o ex-presidente. Para surpresa do Executivo, depois da volta a Quito da dita delegação, suas principais cabeças – Ricardo Patiño, Paola Pabón e Virgílio Hernandez – anunciavam em coletiva de imprensa a renúncia a seus cargos no Executivo. Desta maneira, Rafael Correa perdia o controle da frente política governamental.
Destruídos todos os canais de comunicação entre o correísmo e o governo morenista, o presidente Moreno anunciaria nos primeiros meses de outubro passado a convocação de uma Consulta Popular onde algumas perguntas tinham a ver com uma lógica de reforma institucional pós-caudilhista que levasse o país a um caminho de superação do regime anterior. Isso terminaria de dinamitar internamente o partido do governo. Os setores afins ao ex-mandatário determinaram a expulsão, de forma irregular, de Lenin Moreno da Aliança PAIS convocando sem legitimidade jurídica uma convenção nacional da organização política com escasso êxito de adesão. O fato anterior acarretou, depois de uma decisão do Tribunal Contencioso Eleitoral, na perda do correísmo do controle do próprio partido.
O último episódio deste mar de desacertos correístas se deu já em janeiro do presente ano, quando Correa chamou à desfiliação seus seguidores de Aliança PAIS, o que implicou também na perda de controle do legislativo, ficando com apenas 29 parlamentares, enquanto os outros 45 se alinharam a Lenín Moreno.
Em suma, apesar de ser difícil encontrar um ex-presidente que depois de dez anos de gestão mantivesse o nível de apoio de Correa, também é difícil encontrar algum que tenha demonstrado tal capacidade para dilapidá-lo tão rapidamente.
Consulta e pós-consulta
Foi assim que se chegou a 4 de fevereiro, momento em que o correísmo saboreou pela primeira vez uma derrota eleitoral. No fundo, assistimos algo que foi mais além da realização política de uma realidade indiscutível no Equador: o correísmo nunca construiu uma força social e política afim, mas utilizou o aparato de Estado operando sob lógicas clientelistas em favor de um partido de governo e da construção da imagem midiática de Rafael Correa como um grande caudilho populista. Isso implicou em que, após o abandono da cadeira presidencial e da recusa de seus caprichos nas instituições do Estado, seu apoio político diminuísse notavelmente.
A sociedade equatoriana votou pela conformação de um regime de transição que permitia superar a herança implantada pelo governo anterior, gerando as condições para a construção de um novo cenário político após o fim da hegemonia correísta. Foi cortado o cordão umbilical que vinculava o novo governo ao anterior, o que desabilita a narrativa correísta de que Lenin Moreno ocupa a presidência do país graças ao endosso de votos derivado da figura de Rafael Correa.
Após a consulta o país entra em uma nova fase política. Por um lado, o presidente Lenin Moreno ganhou momentaneamente sua disputa com o antecessor, apesar de Correa ainda manter um terço do eleitorado equatoriano. Correa e seus seguidores, após a desfiliação da Aliança PAIS, estão obrigados a conformar um novo movimento político nacional, apesar de a popularidade de seu líder estar em decadência. Correa, consciente de que o setor de antigos líderes da Aliança PAIS que o acompanham nesta nova aventura acrescentam realmente pouco, dada a má imagem diante da sociedade, está obrigado a liderar pessoalmente a construção do novo partido. Será uma tarefa urgente e nada fácil para o neocorreísmo criar uma nova figura política que tenha chances de disputar a presidência da República em 2021.
Por sua parte, a vontade de tal tendência é ocupar o espaço político da esquerda equatoriana, algo que já fizeram em 2006, apesar dos desencontros entre seu discurso e sua prática. Conseguir tal objetivo passa por bloquear qualquer possibilidade de construção de alternativas políticas no campo popular, algo urgentemente necessário para um país que sofre de uma esquerda cujo discurso político se encontra sem capacidade de sintonia com a sociedade, onde não existe geração de novas lideranças, e que se vê carente de construir uma proposta convincente para um novo modelo de sociedade e país.
Apesar de ser certo que a esquerda política e social equatoriana foi fracionada, em muitos casos cooptada e até perseguida pelo regime correísta durante os últimos dez anos, também é certo que existe uma incapacidade política por parte de sua endogâmica dirigência para se reinventar e reposicionar, com um discurso adaptado ao momento atual do país. O mero fato de que grande parte de tal esquerda apoiou em sua lógica anticorreísta a candidatura do conservador Guillermo Lasso no segundo turno das últimas eleições presidenciais é uma demonstração palpável de sua desorientação política e descrédito do que atualmente gozam na cidadania equatoriana. Nas fileiras conservadoras, as forças políticas que até o momento decidiram não fazer oposição política contumaz ao atual governo mudaram de atitude.
A proximidade de eleições seccionais, daqui um ano, faz as organizações políticas da direita voltarem a assumir protagonismo depois de uma aliança antinatural que permitiu a sensibilidades ideológicas muito diferentes um pacto de não agressão em troca de trabalharem, todos juntos, pelo Sim nesta consulta, em nome da finalidade de enterrar politicamente o correísmo.
Meios de comunicação, setores empresariais e forças políticas conservadoras já anunciaram mudanças sobre sua ação diante do governo de Lenín Moreno, o que significará o aumento da pressão política e possivelmente de manifestações de rua, no sentido de que o governo adote posições mais reacionárias fundamentalmente no âmbito da política econômica.
Em todo caso, os setores da direita se mantêm divididos, existindo duas cabeças, até agora politicamente enfrentadas, que respondem a grupos de interesses diferentes. Tanto Guillermo Lasso, de forma aberta, como Jaime Nebot, de maneira mais sutil, aspiram à presidência da República no ano de 2021 ou até antes, se forem capazes de forçar o fim antecipado do mandato morenista, um governo sobre o qual visualizam debilidades não existentes no anterior.
Portanto, o governo nacional enfrenta uma situação inédita a partir de agora, a qual consistirá em receber de forma indiscriminada ataques tanto da direita – inclusive meios de comunicação privados e lobbies empresariais como nesta pretendida nova esquerda correísta. Que Lenín Moreno e sua equipe de gestão sejam capazes de fazer frente a tais pressões está por ser visto. De todo modo, a estratégia de um e outro lado já começou, em alguns casos até com apoio internacional, tal como no caso de Correa, que em breve disporá da plataforma televisiva Russian Today (RT), um meio de comunicação sensacionalista a serviço do aparato de propaganda de Vladimir Putin, como ferramenta de ataque ao atual governo.
Das sete perguntas impulsionadas pelo Executivo, as três primeiras tinham relação direta com o correísmo, abordando temas como:
• A supressão de direitos políticos de condenados por corrupção, o que afeta a um número cada vez maior de altos funcionários que formaram parte do núcleo de poder do regime anterior – já há uma dezena de ex-ministros correístas que se encontram imputados em diferentes processos e este número aumentará – e que poderia terminar afetando o próprio Rafael Correa.
• A eliminação da emenda constitucional aprovada na última fase do governo anterior, pela qual implementava a reeleição indefinida nos cargos de gestão pública a partir de 2021, e que permitia a Correa voltar a se apresentar, tal como era sua intenção, no próximo pleito presidencial;
• E a recomposição do Conselho de Participação Cidadã e Controle Social – popularmente conhecido como o quinto poder constitucional – cujos membros designavam parte dos titulares das instituições do país, o que permitiu ao aparato correísta seguir controlando a estrutura do Estado, apesar de o ex-presidente não ocupar mais o cargo máximo.
O que foi o correísmo?
Compreender a situação atual do Equador significa entender o que foi isso que se convencionou chamar de correísmo e porque deixou de ser funcional neste momento para as elites equatorianas.
Desde 1997, a partir do governo de Abdalá Bucaram, o Equador inaugurou uma etapa de crise institucional permanente que fez com que nenhum presidente eleito desde então nas urnas conseguisse terminar o mandato.
Evidentemente, isso gerava grande instabilidade política e se tornou um fator de desequilíbrio importante a respeito de uma política de investimentos que se faziam cada vez mais urgentes e necessárias para a modernização capitalista que o país deveria empreender após a crise financeira de 1999 e 2000.
Com a entrada do presente século, a economia mundial se estabilizou, superando várias e importantes crises sofridas em diversos países do mundo – México e Venezuela (1994), Tailândia, Indonésia, Filipinas, Taiwan, Coreia do Sul (1997), Rússia (1998), Brasil (1999) ou Argentina (2001) – o que permitiu a melhora econômica internacional, com taxas de crescimento de 4% a 6% no começo da década, até a chegada da crise financeira global de 2008.
Da mesma forma, desde 2003 os preços das commodities aumentaram pelos efeitos dos furacões, como o Katrina, em instalações petroleiras; o crescimento na economia; e, particularmente, pelo auge da indústria da construção, que terminou em uma bolha especulativa cuja explosão fez os investidores voltarem suas pautas a mercados especulativos, tais como de ouro e petróleo, causando uma superdemanda artificial, o que fez o preço do óleo cru chegar ao seu ápice de 147,27 dólares o barril, em julho de 2008.
Neste contexto, o óleo cru equatoriano, que depende da cotização do petróleo norte-americano West Texas Intermediate (WTI) – que é o parâmetro de óleo cru nos EUA - e basicamente é vendido tanto pela PetroEcuador como pelas companhias privadas estrangeiras do país, também elevou notavelmente seus preços.
Sendo um país economicamente dependente de tal produto, o crescimento médio do PIB equatoriano durante a primeira década do presente século foi de 4,4%, enquanto durante os dez anos anteriores tal indicador não superou 1,8%. O anterior indica que a partir do ano 2000, a economia equatoriana começou a consolidar em grande medida apoiada pelas condições favoráveis – preço do petróleo e remessas provenientes dos migrantes – gerando-se as condições adequadas para uma modernização tardia do sistema capitalista nacional.
Neste contexto, o setor mais dinâmico do capital nacional entendeu que poderia melhorar suas possibilidades de negócio propiciando um maior nível de consumo nos mercados internos através de certa divisão do excedente petroleiro – não da distribuição da riqueza que continua em mãos de poucos – e a incorporação ao mercado de setores populares mediante o endividamento familiar e financeirização popular (democratização do consumo com base em empréstimos do setor financeiro privado). Este é o papel que fundamentalmente desempenhou o governo de Rafael Correa durante o último período de bonança econômica no Equador.
Ao largo da primeira década do presente século, a maior fatia de participação no PIB da economia nacional foi o consumo privado, o qual representou uma média de 66,6% do PIB, convertendo-se em fator de maior contribuição ao crescimento nacional durante o período prévio à queda de preços do petróleo.
A dinamização da economia nacional tendo como motor o Estado, eixo da política econômica correísta, significou que os setores empresariais e financeiros foram os principais beneficiados em uma ação que carecia de riscos para os investimentos privados, pois se fazia base do erário público.
O respeito demonstrado pelo governo correísta à matriz de acumulação herdada da era neoliberal acarretou na inexistência da mais mínima transformação de caráter estrutural sobre os pilares que fundamentam os eixos constitutivos do poder no Equador; isso, apesar de setores historicamente esquecidos poderem se beneficiar durante o período de bonança de certas políticas assistencialistas, baseadas na transferência do excedente derivado de aprofundamento das políticas extrativistas. De quebra, significou que enquanto se ancorava em um propagandístico discurso soberanista, no interior do país se piorava cada vez mais a dependência econômica internacional dos mercados especulativos globais e se reprimarizassem substancialmente a economia global.
O modelo econômico funcionou e inclusive gozou de amplo apoio popular, milagre econômico diziam, enquanto durou o boom das commodities, indo abaixo toda a engrenagem das políticas sociais e econômicas correístas a partir da queda do preço do óleo cru em 2013.
É a partir de então, quando começam a se deteriorar certos serviços públicos, que a economia nacional se paralisa, o consumo interno cai e os indicadores de diminuição da pobreza e incremento da capacidade aquisitiva por parte dos trabalhadores passa a decair.
Em fevereiro de 2014, o governo do presidente Rafael Correa começaria a sentir o desgaste político de seu mandato, perdendo as eleições seccionais e as principais prefeituras do país para partidos de oposição. Os setores empresariais que em outro momento tinham sido beneficiados pelas políticas correístas, entendem ser hora de diminuir o gasto público, reduzir o volume do Estado e voltar a liberalizar a economia. Ante a nova falta de liquidez do Estado equatoriano, este deixou de ser funcional para seguir dinamizando a economia nacional, de modo que voltou a se colocar em questão a política de subsídios sociais.
O anterior significou incremento das mobilizações populares no conjunto do país e derivou em uma convocatória de greve/mobilização em agosto de 2015, de parte do movimento indígena e do sindicalismo não clientelista, que terminou vergonhosamente reprimida pelas forças de segurança do Estado.
O conflito entre Correa e Moreno
Em tais condições, e em meio a uma agressiva política de endividamento público que derivou na superação do volume atual de dívida externa, com sobras, dos níveis herdados da época neoliberal, o então mandatário equatoriano decidiu não se apresentar às eleições de 2017, mas deixou aberta a porta para uma nova postulação em 2021.
Estrategicamente, o correísmo considerou que era melhor outro mandatário a proceder as políticas econômicas de ajuste já inapelavelmente necessárias ao país, permitindo assim uma regeneração da imagem de Rafael Correa, que estrategicamente voltaria em 2021 para “salvar” o Equador dos programas de ajuste, frutos de um déficit bruto, galopante e insustentável. Assim, em dezembro de 2015, a bancada oficialista aprovou forçosamente uma reforma constitucional que permitia a reeleição do mandatário para o período imediatamente posterior a uma legislatura marcada pela crise econômica herdada da gestão de saída.
Ainda assim, a estratégia para a volta ao poder de Correa passava pela necessidade de seguir controlando o aparato de Estado durante o atual período, bloqueando qualquer possibilidade de fiscalização e auditorias internas que pudesse se fazer sobre um modelo de gestão pública altamente corrupto, que significou durante dez anos a submissão de todos os poderes e órgãos de controle do Estado pelo Executivo.
Isso implicou na necessidade de a Aliança PAIS ganhar em 2017, ficando a maior parte das instituições públicas em mãos de ex-funcionários de provada proximidade com o ex-presidente. A única figura com a qual a Aliança PAIS contava para ganhar tais eleições era Lenin Moreno, que por suas funções de enviado especial do Secretário Geral da ONU sobre a Incapacidade e Acessibilidade residia em Genebra desde 2014, o que implicava no fato de ter se mantido à margem da degradação correísta dos últimos anos.
Devemos nos remeter mais atrás no passado histórico do Equador para encontrar um mandatário que depois de dez anos de gestão continuada do poder terminou seu período com certo respaldo político – apesar da decadência dos últimos anos – como era o caso de Rafael Correa. Apesar da polarização social criada ao redor de sua figura, Correa abandonou a poltrona presidencial ainda sob importante apoio social, fundamentalmente entre os setores populares, os quais reconheciam o impulso a projetos sociais de caráter assistencialista e o investimento realizado durante a última década no âmbito da infraestrutura e modernização do Estado. Ainda assim, foi uma grande concatenação acelerada de erros políticos estratégicos que fizeram com que o ex-mandatário perdesse a hegemonia política ainda mantida no país.
Com a chegada da nova administração de Lenin, o correísmo deixava em postos estratégicos grande parte de sua equipe anterior de gestão. Isso significava que mantinha o controle sobre enorme e desmedido aparato de propaganda governamental, articulado na década passada, tal como se fazia a respeito do controle sobre a produção – sobre a qual o Estado equatoriano tinha notável incidência durante os últimos dez anos – no altar das responsabilidades estabelecidas em torno da figura do vice-presidente da República, Jorge Glas, o principal homem de confiança de Rafael Correa no novo gabinete, que se mantinha como responsável da mudança de matriz produtiva e investimento em megaprojetos.
Mas ao tempo, o correísmo mantinha o controle também sobre a frente política do governo através de figuras como a primeira titular da Secretaria Nacional de Gestão Pública (Paola Pabón) e do conselheiro presidencial (Ricardo Patiño), o principal operador político dentro da Aliança PAIS durante a gestão anterior, tal como fazia a respeito da Assembleia Nacional – o legislativo equatoriano – através de seus operadores na bancada majoritária da Aliança PAIS.
Não contente, Rafael Correa controlava também, mediante o Conselho de Participação Cidadã e Controle Social, os órgãos de fiscalização e controle do aparato de Estado, cuja designação de responsável respondia integralmente a personalidades afinadas ao ex-presidente. Isso ocorreu em instituições como o Conselho Nacional Eleitoral, a Corte Constitucional, a Controladoria Geral do Estado, a Procuradoria Geral do Estado, o Tribunal Contencioso Eleitoral, o Conselho do Judiciário ou a Defensoria do Povo, entre outros.
Apesar das tensões entre Lenin Moreno e a ala dura correísta serem palpáveis, desde esse mesmo momento, da investidura do atual presidente da República, em 24 de maio passado, momento em que a nova administração descobriu o estado real das finanças públicas, foi a entrega da sede social da CONAIE – estrutura organizativa do movimento indígena e organização social mais importante do país – e o anúncio em julho passado dos primeiros indultos de líderes populares criminalizados durante o regime anterior que geraram reações desqualificadoras de Rafael Correa sobre seu sucessor.
A partir daí os operadores correístas localizados em funções de direção dos distintos meios públicos começam a articular uma campanha contra a imagem do presidente Moreno, aduzindo que o país voltava às políticas do passado e que se estava produzindo uma divisão de poderes com as elites oligárquicas, o que significou que a nova administração morenista nomeasse novos responsáveis em tais meios de comunicação e órgãos. Desta maneira, o ex-presidente Correa perdia o controle do imenso aparato de propaganda e comunicação cuja criação havia sido auspiciada por ele mesmo.
Um mês depois, em inícios de agosto e já com a água no pescoço pelas investigações judiciais que se faziam a respeito da trama da Odebrecht no Equador, o então vice-presidente Jorge Glas – que fora também o segundo mandatário durante a última fase da era Correa – emitia uma extensa carta pública contra o atual chefe de Estado, acusando-o de convergir com os setores politicamente mais reacionários do país. A ruptura de relações entre o presidente Moreno e Jorge Glas acarretou na inabilitação do cargo do segundo, o que trouxe a perda de controle por parte de Rafael Correa sobre o aparato produtivo e os investimentos nos megaprojetos implementados no país. Meses mais tarde e fruto de investigações judiciais anticorrupção, Jorge Glas terminaria ocupando uma cela na prisão número 4 de Quito e destituído do cargo. O correísmo perdia, portanto, também sua incidência no aparato produtivo.
Poucos dias depois do exabrupto vice-presidencial e em vias de solucionar este conflito, o presidente Moreno enviaria a Bruxelas – lugar de residência atual de Correa – os principais operadores políticos de governo, todos eles vinculados durante a gestão anterior do ex-mandatário, com o fim de reconduzir de forma amigável as relações com o ex-presidente. Para surpresa do Executivo, depois da volta a Quito da dita delegação, suas principais cabeças – Ricardo Patiño, Paola Pabón e Virgílio Hernandez – anunciavam em coletiva de imprensa a renúncia a seus cargos no Executivo. Desta maneira, Rafael Correa perdia o controle da frente política governamental.
Destruídos todos os canais de comunicação entre o correísmo e o governo morenista, o presidente Moreno anunciaria nos primeiros meses de outubro passado a convocação de uma Consulta Popular onde algumas perguntas tinham a ver com uma lógica de reforma institucional pós-caudilhista que levasse o país a um caminho de superação do regime anterior. Isso terminaria de dinamitar internamente o partido do governo. Os setores afins ao ex-mandatário determinaram a expulsão, de forma irregular, de Lenin Moreno da Aliança PAIS convocando sem legitimidade jurídica uma convenção nacional da organização política com escasso êxito de adesão. O fato anterior acarretou, depois de uma decisão do Tribunal Contencioso Eleitoral, na perda do correísmo do controle do próprio partido.
O último episódio deste mar de desacertos correístas se deu já em janeiro do presente ano, quando Correa chamou à desfiliação seus seguidores de Aliança PAIS, o que implicou também na perda de controle do legislativo, ficando com apenas 29 parlamentares, enquanto os outros 45 se alinharam a Lenín Moreno.
Em suma, apesar de ser difícil encontrar um ex-presidente que depois de dez anos de gestão mantivesse o nível de apoio de Correa, também é difícil encontrar algum que tenha demonstrado tal capacidade para dilapidá-lo tão rapidamente.
Consulta e pós-consulta
Foi assim que se chegou a 4 de fevereiro, momento em que o correísmo saboreou pela primeira vez uma derrota eleitoral. No fundo, assistimos algo que foi mais além da realização política de uma realidade indiscutível no Equador: o correísmo nunca construiu uma força social e política afim, mas utilizou o aparato de Estado operando sob lógicas clientelistas em favor de um partido de governo e da construção da imagem midiática de Rafael Correa como um grande caudilho populista. Isso implicou em que, após o abandono da cadeira presidencial e da recusa de seus caprichos nas instituições do Estado, seu apoio político diminuísse notavelmente.
A sociedade equatoriana votou pela conformação de um regime de transição que permitia superar a herança implantada pelo governo anterior, gerando as condições para a construção de um novo cenário político após o fim da hegemonia correísta. Foi cortado o cordão umbilical que vinculava o novo governo ao anterior, o que desabilita a narrativa correísta de que Lenin Moreno ocupa a presidência do país graças ao endosso de votos derivado da figura de Rafael Correa.
Após a consulta o país entra em uma nova fase política. Por um lado, o presidente Lenin Moreno ganhou momentaneamente sua disputa com o antecessor, apesar de Correa ainda manter um terço do eleitorado equatoriano. Correa e seus seguidores, após a desfiliação da Aliança PAIS, estão obrigados a conformar um novo movimento político nacional, apesar de a popularidade de seu líder estar em decadência. Correa, consciente de que o setor de antigos líderes da Aliança PAIS que o acompanham nesta nova aventura acrescentam realmente pouco, dada a má imagem diante da sociedade, está obrigado a liderar pessoalmente a construção do novo partido. Será uma tarefa urgente e nada fácil para o neocorreísmo criar uma nova figura política que tenha chances de disputar a presidência da República em 2021.
Por sua parte, a vontade de tal tendência é ocupar o espaço político da esquerda equatoriana, algo que já fizeram em 2006, apesar dos desencontros entre seu discurso e sua prática. Conseguir tal objetivo passa por bloquear qualquer possibilidade de construção de alternativas políticas no campo popular, algo urgentemente necessário para um país que sofre de uma esquerda cujo discurso político se encontra sem capacidade de sintonia com a sociedade, onde não existe geração de novas lideranças, e que se vê carente de construir uma proposta convincente para um novo modelo de sociedade e país.
Apesar de ser certo que a esquerda política e social equatoriana foi fracionada, em muitos casos cooptada e até perseguida pelo regime correísta durante os últimos dez anos, também é certo que existe uma incapacidade política por parte de sua endogâmica dirigência para se reinventar e reposicionar, com um discurso adaptado ao momento atual do país. O mero fato de que grande parte de tal esquerda apoiou em sua lógica anticorreísta a candidatura do conservador Guillermo Lasso no segundo turno das últimas eleições presidenciais é uma demonstração palpável de sua desorientação política e descrédito do que atualmente gozam na cidadania equatoriana. Nas fileiras conservadoras, as forças políticas que até o momento decidiram não fazer oposição política contumaz ao atual governo mudaram de atitude.
A proximidade de eleições seccionais, daqui um ano, faz as organizações políticas da direita voltarem a assumir protagonismo depois de uma aliança antinatural que permitiu a sensibilidades ideológicas muito diferentes um pacto de não agressão em troca de trabalharem, todos juntos, pelo Sim nesta consulta, em nome da finalidade de enterrar politicamente o correísmo.
Meios de comunicação, setores empresariais e forças políticas conservadoras já anunciaram mudanças sobre sua ação diante do governo de Lenín Moreno, o que significará o aumento da pressão política e possivelmente de manifestações de rua, no sentido de que o governo adote posições mais reacionárias fundamentalmente no âmbito da política econômica.
Em todo caso, os setores da direita se mantêm divididos, existindo duas cabeças, até agora politicamente enfrentadas, que respondem a grupos de interesses diferentes. Tanto Guillermo Lasso, de forma aberta, como Jaime Nebot, de maneira mais sutil, aspiram à presidência da República no ano de 2021 ou até antes, se forem capazes de forçar o fim antecipado do mandato morenista, um governo sobre o qual visualizam debilidades não existentes no anterior.
Portanto, o governo nacional enfrenta uma situação inédita a partir de agora, a qual consistirá em receber de forma indiscriminada ataques tanto da direita – inclusive meios de comunicação privados e lobbies empresariais como nesta pretendida nova esquerda correísta. Que Lenín Moreno e sua equipe de gestão sejam capazes de fazer frente a tais pressões está por ser visto. De todo modo, a estratégia de um e outro lado já começou, em alguns casos até com apoio internacional, tal como no caso de Correa, que em breve disporá da plataforma televisiva Russian Today (RT), um meio de comunicação sensacionalista a serviço do aparato de propaganda de Vladimir Putin, como ferramenta de ataque ao atual governo.
Em 4 de fevereiro o
povo equatoriano decidiu terminar com a hegemonia correísta que dominou
o país nos últimos 11 anos. Dois de cada três cidadãos votaram a favor
das perguntas da Consulta Popular impulsionada pelo Governo Nacional, em
uma lógica de disputa auspiciada pelo ex-mandatário Rafael Correa,
produzindo-se pela primeira vez na história uma rejeição cidadã
majoritária aos seus postulados políticos. Até então – mediante
consultas populares, plebiscitos, referendos – o ex-presidente Correa
havia chegado a acumular em apenas dez anos doze vitórias consecutivas
nas urnas.
Das sete perguntas impulsionadas pelo Executivo, as três primeiras tinham relação direta com o correísmo, abordando temas como:
• A supressão de direitos políticos de condenados por corrupção, o que afeta a um número cada vez maior de altos funcionários que formaram parte do núcleo de poder do regime anterior – já há uma dezena de ex-ministros correístas que se encontram imputados em diferentes processos e este número aumentará – e que poderia terminar afetando o próprio Rafael Correa.
• A eliminação da emenda constitucional aprovada na última fase do governo anterior, pela qual implementava a reeleição indefinida nos cargos de gestão pública a partir de 2021, e que permitia a Correa voltar a se apresentar, tal como era sua intenção, no próximo pleito presidencial;
• E a recomposição do Conselho de Participação Cidadã e Controle Social – popularmente conhecido como o quinto poder constitucional – cujos membros designavam parte dos titulares das instituições do país, o que permitiu ao aparato correísta seguir controlando a estrutura do Estado, apesar de o ex-presidente não ocupar mais o cargo máximo.
O que foi o correísmo?
Compreender a situação atual do Equador significa entender o que foi isso que se convencionou chamar de correísmo e porque deixou de ser funcional neste momento para as elites equatorianas.
Desde 1997, a partir do governo de Abdalá Bucaram, o Equador inaugurou uma etapa de crise institucional permanente que fez com que nenhum presidente eleito desde então nas urnas conseguisse terminar o mandato.
Evidentemente, isso gerava grande instabilidade política e se tornou um fator de desequilíbrio importante a respeito de uma política de investimentos que se faziam cada vez mais urgentes e necessárias para a modernização capitalista que o país deveria empreender após a crise financeira de 1999 e 2000.
Com a entrada do presente século, a economia mundial se estabilizou, superando várias e importantes crises sofridas em diversos países do mundo – México e Venezuela (1994), Tailândia, Indonésia, Filipinas, Taiwan, Coreia do Sul (1997), Rússia (1998), Brasil (1999) ou Argentina (2001) – o que permitiu a melhora econômica internacional, com taxas de crescimento de 4% a 6% no começo da década, até a chegada da crise financeira global de 2008.
Da mesma forma, desde 2003 os preços das commodities aumentaram pelos efeitos dos furacões, como o Katrina, em instalações petroleiras; o crescimento na economia; e, particularmente, pelo auge da indústria da construção, que terminou em uma bolha especulativa cuja explosão fez os investidores voltarem suas pautas a mercados especulativos, tais como de ouro e petróleo, causando uma superdemanda artificial, o que fez o preço do óleo cru chegar ao seu ápice de 147,27 dólares o barril, em julho de 2008.
Neste contexto, o óleo cru equatoriano, que depende da cotização do petróleo norte-americano West Texas Intermediate (WTI) – que é o parâmetro de óleo cru nos EUA - e basicamente é vendido tanto pela PetroEcuador como pelas companhias privadas estrangeiras do país, também elevou notavelmente seus preços.
Sendo um país economicamente dependente de tal produto, o crescimento médio do PIB equatoriano durante a primeira década do presente século foi de 4,4%, enquanto durante os dez anos anteriores tal indicador não superou 1,8%. O anterior indica que a partir do ano 2000, a economia equatoriana começou a consolidar em grande medida apoiada pelas condições favoráveis – preço do petróleo e remessas provenientes dos migrantes – gerando-se as condições adequadas para uma modernização tardia do sistema capitalista nacional.
Neste contexto, o setor mais dinâmico do capital nacional entendeu que poderia melhorar suas possibilidades de negócio propiciando um maior nível de consumo nos mercados internos através de certa divisão do excedente petroleiro – não da distribuição da riqueza que continua em mãos de poucos – e a incorporação ao mercado de setores populares mediante o endividamento familiar e financeirização popular (democratização do consumo com base em empréstimos do setor financeiro privado). Este é o papel que fundamentalmente desempenhou o governo de Rafael Correa durante o último período de bonança econômica no Equador.
Ao largo da primeira década do presente século, a maior fatia de participação no PIB da economia nacional foi o consumo privado, o qual representou uma média de 66,6% do PIB, convertendo-se em fator de maior contribuição ao crescimento nacional durante o período prévio à queda de preços do petróleo.
A dinamização da economia nacional tendo como motor o Estado, eixo da política econômica correísta, significou que os setores empresariais e financeiros foram os principais beneficiados em uma ação que carecia de riscos para os investimentos privados, pois se fazia base do erário público.
O respeito demonstrado pelo governo correísta à matriz de acumulação herdada da era neoliberal acarretou na inexistência da mais mínima transformação de caráter estrutural sobre os pilares que fundamentam os eixos constitutivos do poder no Equador; isso, apesar de setores historicamente esquecidos poderem se beneficiar durante o período de bonança de certas políticas assistencialistas, baseadas na transferência do excedente derivado de aprofundamento das políticas extrativistas. De quebra, significou que enquanto se ancorava em um propagandístico discurso soberanista, no interior do país se piorava cada vez mais a dependência econômica internacional dos mercados especulativos globais e se reprimarizassem substancialmente a economia global.
O modelo econômico funcionou e inclusive gozou de amplo apoio popular, milagre econômico diziam, enquanto durou o boom das commodities, indo abaixo toda a engrenagem das políticas sociais e econômicas correístas a partir da queda do preço do óleo cru em 2013.
É a partir de então, quando começam a se deteriorar certos serviços públicos, que a economia nacional se paralisa, o consumo interno cai e os indicadores de diminuição da pobreza e incremento da capacidade aquisitiva por parte dos trabalhadores passa a decair.
Em fevereiro de 2014, o governo do presidente Rafael Correa começaria a sentir o desgaste político de seu mandato, perdendo as eleições seccionais e as principais prefeituras do país para partidos de oposição. Os setores empresariais que em outro momento tinham sido beneficiados pelas políticas correístas, entendem ser hora de diminuir o gasto público, reduzir o volume do Estado e voltar a liberalizar a economia. Ante a nova falta de liquidez do Estado equatoriano, este deixou de ser funcional para seguir dinamizando a economia nacional, de modo que voltou a se colocar em questão a política de subsídios sociais.
O anterior significou incremento das mobilizações populares no conjunto do país e derivou em uma convocatória de greve/mobilização em agosto de 2015, de parte do movimento indígena e do sindicalismo não clientelista, que terminou vergonhosamente reprimida pelas forças de segurança do Estado.
O conflito entre Correa e Moreno
Em tais condições, e em meio a uma agressiva política de endividamento público que derivou na superação do volume atual de dívida externa, com sobras, dos níveis herdados da época neoliberal, o então mandatário equatoriano decidiu não se apresentar às eleições de 2017, mas deixou aberta a porta para uma nova postulação em 2021.
Estrategicamente, o correísmo considerou que era melhor outro mandatário a proceder as políticas econômicas de ajuste já inapelavelmente necessárias ao país, permitindo assim uma regeneração da imagem de Rafael Correa, que estrategicamente voltaria em 2021 para “salvar” o Equador dos programas de ajuste, frutos de um déficit bruto, galopante e insustentável. Assim, em dezembro de 2015, a bancada oficialista aprovou forçosamente uma reforma constitucional que permitia a reeleição do mandatário para o período imediatamente posterior a uma legislatura marcada pela crise econômica herdada da gestão de saída.
Ainda assim, a estratégia para a volta ao poder de Correa passava pela necessidade de seguir controlando o aparato de Estado durante o atual período, bloqueando qualquer possibilidade de fiscalização e auditorias internas que pudesse se fazer sobre um modelo de gestão pública altamente corrupto, que significou durante dez anos a submissão de todos os poderes e órgãos de controle do Estado pelo Executivo.
Isso implicou na necessidade de a Aliança PAIS ganhar em 2017, ficando a maior parte das instituições públicas em mãos de ex-funcionários de provada proximidade com o ex-presidente. A única figura com a qual a Aliança PAIS contava para ganhar tais eleições era Lenin Moreno, que por suas funções de enviado especial do Secretário Geral da ONU sobre a Incapacidade e Acessibilidade residia em Genebra desde 2014, o que implicava no fato de ter se mantido à margem da degradação correísta dos últimos anos.
Devemos nos remeter mais atrás no passado histórico do Equador para encontrar um mandatário que depois de dez anos de gestão continuada do poder terminou seu período com certo respaldo político – apesar da decadência dos últimos anos – como era o caso de Rafael Correa. Apesar da polarização social criada ao redor de sua figura, Correa abandonou a poltrona presidencial ainda sob importante apoio social, fundamentalmente entre os setores populares, os quais reconheciam o impulso a projetos sociais de caráter assistencialista e o investimento realizado durante a última década no âmbito da infraestrutura e modernização do Estado. Ainda assim, foi uma grande concatenação acelerada de erros políticos estratégicos que fizeram com que o ex-mandatário perdesse a hegemonia política ainda mantida no país.
Com a chegada da nova administração de Lenin, o correísmo deixava em postos estratégicos grande parte de sua equipe anterior de gestão. Isso significava que mantinha o controle sobre enorme e desmedido aparato de propaganda governamental, articulado na década passada, tal como se fazia a respeito do controle sobre a produção – sobre a qual o Estado equatoriano tinha notável incidência durante os últimos dez anos – no altar das responsabilidades estabelecidas em torno da figura do vice-presidente da República, Jorge Glas, o principal homem de confiança de Rafael Correa no novo gabinete, que se mantinha como responsável da mudança de matriz produtiva e investimento em megaprojetos.
Mas ao tempo, o correísmo mantinha o controle também sobre a frente política do governo através de figuras como a primeira titular da Secretaria Nacional de Gestão Pública (Paola Pabón) e do conselheiro presidencial (Ricardo Patiño), o principal operador político dentro da Aliança PAIS durante a gestão anterior, tal como fazia a respeito da Assembleia Nacional – o legislativo equatoriano – através de seus operadores na bancada majoritária da Aliança PAIS.
Não contente, Rafael Correa controlava também, mediante o Conselho de Participação Cidadã e Controle Social, os órgãos de fiscalização e controle do aparato de Estado, cuja designação de responsável respondia integralmente a personalidades afinadas ao ex-presidente. Isso ocorreu em instituições como o Conselho Nacional Eleitoral, a Corte Constitucional, a Controladoria Geral do Estado, a Procuradoria Geral do Estado, o Tribunal Contencioso Eleitoral, o Conselho do Judiciário ou a Defensoria do Povo, entre outros.
Apesar das tensões entre Lenin Moreno e a ala dura correísta serem palpáveis, desde esse mesmo momento, da investidura do atual presidente da República, em 24 de maio passado, momento em que a nova administração descobriu o estado real das finanças públicas, foi a entrega da sede social da CONAIE – estrutura organizativa do movimento indígena e organização social mais importante do país – e o anúncio em julho passado dos primeiros indultos de líderes populares criminalizados durante o regime anterior que geraram reações desqualificadoras de Rafael Correa sobre seu sucessor.
A partir daí os operadores correístas localizados em funções de direção dos distintos meios públicos começam a articular uma campanha contra a imagem do presidente Moreno, aduzindo que o país voltava às políticas do passado e que se estava produzindo uma divisão de poderes com as elites oligárquicas, o que significou que a nova administração morenista nomeasse novos responsáveis em tais meios de comunicação e órgãos. Desta maneira, o ex-presidente Correa perdia o controle do imenso aparato de propaganda e comunicação cuja criação havia sido auspiciada por ele mesmo.
Um mês depois, em inícios de agosto e já com a água no pescoço pelas investigações judiciais que se faziam a respeito da trama da Odebrecht no Equador, o então vice-presidente Jorge Glas – que fora também o segundo mandatário durante a última fase da era Correa – emitia uma extensa carta pública contra o atual chefe de Estado, acusando-o de convergir com os setores politicamente mais reacionários do país. A ruptura de relações entre o presidente Moreno e Jorge Glas acarretou na inabilitação do cargo do segundo, o que trouxe a perda de controle por parte de Rafael Correa sobre o aparato produtivo e os investimentos nos megaprojetos implementados no país. Meses mais tarde e fruto de investigações judiciais anticorrupção, Jorge Glas terminaria ocupando uma cela na prisão número 4 de Quito e destituído do cargo. O correísmo perdia, portanto, também sua incidência no aparato produtivo.
Poucos dias depois do exabrupto vice-presidencial e em vias de solucionar este conflito, o presidente Moreno enviaria a Bruxelas – lugar de residência atual de Correa – os principais operadores políticos de governo, todos eles vinculados durante a gestão anterior do ex-mandatário, com o fim de reconduzir de forma amigável as relações com o ex-presidente. Para surpresa do Executivo, depois da volta a Quito da dita delegação, suas principais cabeças – Ricardo Patiño, Paola Pabón e Virgílio Hernandez – anunciavam em coletiva de imprensa a renúncia a seus cargos no Executivo. Desta maneira, Rafael Correa perdia o controle da frente política governamental.
Destruídos todos os canais de comunicação entre o correísmo e o governo morenista, o presidente Moreno anunciaria nos primeiros meses de outubro passado a convocação de uma Consulta Popular onde algumas perguntas tinham a ver com uma lógica de reforma institucional pós-caudilhista que levasse o país a um caminho de superação do regime anterior. Isso terminaria de dinamitar internamente o partido do governo. Os setores afins ao ex-mandatário determinaram a expulsão, de forma irregular, de Lenin Moreno da Aliança PAIS convocando sem legitimidade jurídica uma convenção nacional da organização política com escasso êxito de adesão. O fato anterior acarretou, depois de uma decisão do Tribunal Contencioso Eleitoral, na perda do correísmo do controle do próprio partido.
O último episódio deste mar de desacertos correístas se deu já em janeiro do presente ano, quando Correa chamou à desfiliação seus seguidores de Aliança PAIS, o que implicou também na perda de controle do legislativo, ficando com apenas 29 parlamentares, enquanto os outros 45 se alinharam a Lenín Moreno.
Em suma, apesar de ser difícil encontrar um ex-presidente que depois de dez anos de gestão mantivesse o nível de apoio de Correa, também é difícil encontrar algum que tenha demonstrado tal capacidade para dilapidá-lo tão rapidamente.
Consulta e pós-consulta
Foi assim que se chegou a 4 de fevereiro, momento em que o correísmo saboreou pela primeira vez uma derrota eleitoral. No fundo, assistimos algo que foi mais além da realização política de uma realidade indiscutível no Equador: o correísmo nunca construiu uma força social e política afim, mas utilizou o aparato de Estado operando sob lógicas clientelistas em favor de um partido de governo e da construção da imagem midiática de Rafael Correa como um grande caudilho populista. Isso implicou em que, após o abandono da cadeira presidencial e da recusa de seus caprichos nas instituições do Estado, seu apoio político diminuísse notavelmente.
A sociedade equatoriana votou pela conformação de um regime de transição que permitia superar a herança implantada pelo governo anterior, gerando as condições para a construção de um novo cenário político após o fim da hegemonia correísta. Foi cortado o cordão umbilical que vinculava o novo governo ao anterior, o que desabilita a narrativa correísta de que Lenin Moreno ocupa a presidência do país graças ao endosso de votos derivado da figura de Rafael Correa.
Após a consulta o país entra em uma nova fase política. Por um lado, o presidente Lenin Moreno ganhou momentaneamente sua disputa com o antecessor, apesar de Correa ainda manter um terço do eleitorado equatoriano. Correa e seus seguidores, após a desfiliação da Aliança PAIS, estão obrigados a conformar um novo movimento político nacional, apesar de a popularidade de seu líder estar em decadência. Correa, consciente de que o setor de antigos líderes da Aliança PAIS que o acompanham nesta nova aventura acrescentam realmente pouco, dada a má imagem diante da sociedade, está obrigado a liderar pessoalmente a construção do novo partido. Será uma tarefa urgente e nada fácil para o neocorreísmo criar uma nova figura política que tenha chances de disputar a presidência da República em 2021.
Por sua parte, a vontade de tal tendência é ocupar o espaço político da esquerda equatoriana, algo que já fizeram em 2006, apesar dos desencontros entre seu discurso e sua prática. Conseguir tal objetivo passa por bloquear qualquer possibilidade de construção de alternativas políticas no campo popular, algo urgentemente necessário para um país que sofre de uma esquerda cujo discurso político se encontra sem capacidade de sintonia com a sociedade, onde não existe geração de novas lideranças, e que se vê carente de construir uma proposta convincente para um novo modelo de sociedade e país.
Apesar de ser certo que a esquerda política e social equatoriana foi fracionada, em muitos casos cooptada e até perseguida pelo regime correísta durante os últimos dez anos, também é certo que existe uma incapacidade política por parte de sua endogâmica dirigência para se reinventar e reposicionar, com um discurso adaptado ao momento atual do país. O mero fato de que grande parte de tal esquerda apoiou em sua lógica anticorreísta a candidatura do conservador Guillermo Lasso no segundo turno das últimas eleições presidenciais é uma demonstração palpável de sua desorientação política e descrédito do que atualmente gozam na cidadania equatoriana. Nas fileiras conservadoras, as forças políticas que até o momento decidiram não fazer oposição política contumaz ao atual governo mudaram de atitude.
A proximidade de eleições seccionais, daqui um ano, faz as organizações políticas da direita voltarem a assumir protagonismo depois de uma aliança antinatural que permitiu a sensibilidades ideológicas muito diferentes um pacto de não agressão em troca de trabalharem, todos juntos, pelo Sim nesta consulta, em nome da finalidade de enterrar politicamente o correísmo.
Meios de comunicação, setores empresariais e forças políticas conservadoras já anunciaram mudanças sobre sua ação diante do governo de Lenín Moreno, o que significará o aumento da pressão política e possivelmente de manifestações de rua, no sentido de que o governo adote posições mais reacionárias fundamentalmente no âmbito da política econômica.
Em todo caso, os setores da direita se mantêm divididos, existindo duas cabeças, até agora politicamente enfrentadas, que respondem a grupos de interesses diferentes. Tanto Guillermo Lasso, de forma aberta, como Jaime Nebot, de maneira mais sutil, aspiram à presidência da República no ano de 2021 ou até antes, se forem capazes de forçar o fim antecipado do mandato morenista, um governo sobre o qual visualizam debilidades não existentes no anterior.
Portanto, o governo nacional enfrenta uma situação inédita a partir de agora, a qual consistirá em receber de forma indiscriminada ataques tanto da direita – inclusive meios de comunicação privados e lobbies empresariais como nesta pretendida nova esquerda correísta. Que Lenín Moreno e sua equipe de gestão sejam capazes de fazer frente a tais pressões está por ser visto. De todo modo, a estratégia de um e outro lado já começou, em alguns casos até com apoio internacional, tal como no caso de Correa, que em breve disporá da plataforma televisiva Russian Today (RT), um meio de comunicação sensacionalista a serviço do aparato de propaganda de Vladimir Putin, como ferramenta de ataque ao atual governo.
Das sete perguntas impulsionadas pelo Executivo, as três primeiras tinham relação direta com o correísmo, abordando temas como:
• A supressão de direitos políticos de condenados por corrupção, o que afeta a um número cada vez maior de altos funcionários que formaram parte do núcleo de poder do regime anterior – já há uma dezena de ex-ministros correístas que se encontram imputados em diferentes processos e este número aumentará – e que poderia terminar afetando o próprio Rafael Correa.
• A eliminação da emenda constitucional aprovada na última fase do governo anterior, pela qual implementava a reeleição indefinida nos cargos de gestão pública a partir de 2021, e que permitia a Correa voltar a se apresentar, tal como era sua intenção, no próximo pleito presidencial;
• E a recomposição do Conselho de Participação Cidadã e Controle Social – popularmente conhecido como o quinto poder constitucional – cujos membros designavam parte dos titulares das instituições do país, o que permitiu ao aparato correísta seguir controlando a estrutura do Estado, apesar de o ex-presidente não ocupar mais o cargo máximo.
O que foi o correísmo?
Compreender a situação atual do Equador significa entender o que foi isso que se convencionou chamar de correísmo e porque deixou de ser funcional neste momento para as elites equatorianas.
Desde 1997, a partir do governo de Abdalá Bucaram, o Equador inaugurou uma etapa de crise institucional permanente que fez com que nenhum presidente eleito desde então nas urnas conseguisse terminar o mandato.
Evidentemente, isso gerava grande instabilidade política e se tornou um fator de desequilíbrio importante a respeito de uma política de investimentos que se faziam cada vez mais urgentes e necessárias para a modernização capitalista que o país deveria empreender após a crise financeira de 1999 e 2000.
Com a entrada do presente século, a economia mundial se estabilizou, superando várias e importantes crises sofridas em diversos países do mundo – México e Venezuela (1994), Tailândia, Indonésia, Filipinas, Taiwan, Coreia do Sul (1997), Rússia (1998), Brasil (1999) ou Argentina (2001) – o que permitiu a melhora econômica internacional, com taxas de crescimento de 4% a 6% no começo da década, até a chegada da crise financeira global de 2008.
Da mesma forma, desde 2003 os preços das commodities aumentaram pelos efeitos dos furacões, como o Katrina, em instalações petroleiras; o crescimento na economia; e, particularmente, pelo auge da indústria da construção, que terminou em uma bolha especulativa cuja explosão fez os investidores voltarem suas pautas a mercados especulativos, tais como de ouro e petróleo, causando uma superdemanda artificial, o que fez o preço do óleo cru chegar ao seu ápice de 147,27 dólares o barril, em julho de 2008.
Neste contexto, o óleo cru equatoriano, que depende da cotização do petróleo norte-americano West Texas Intermediate (WTI) – que é o parâmetro de óleo cru nos EUA - e basicamente é vendido tanto pela PetroEcuador como pelas companhias privadas estrangeiras do país, também elevou notavelmente seus preços.
Sendo um país economicamente dependente de tal produto, o crescimento médio do PIB equatoriano durante a primeira década do presente século foi de 4,4%, enquanto durante os dez anos anteriores tal indicador não superou 1,8%. O anterior indica que a partir do ano 2000, a economia equatoriana começou a consolidar em grande medida apoiada pelas condições favoráveis – preço do petróleo e remessas provenientes dos migrantes – gerando-se as condições adequadas para uma modernização tardia do sistema capitalista nacional.
Neste contexto, o setor mais dinâmico do capital nacional entendeu que poderia melhorar suas possibilidades de negócio propiciando um maior nível de consumo nos mercados internos através de certa divisão do excedente petroleiro – não da distribuição da riqueza que continua em mãos de poucos – e a incorporação ao mercado de setores populares mediante o endividamento familiar e financeirização popular (democratização do consumo com base em empréstimos do setor financeiro privado). Este é o papel que fundamentalmente desempenhou o governo de Rafael Correa durante o último período de bonança econômica no Equador.
Ao largo da primeira década do presente século, a maior fatia de participação no PIB da economia nacional foi o consumo privado, o qual representou uma média de 66,6% do PIB, convertendo-se em fator de maior contribuição ao crescimento nacional durante o período prévio à queda de preços do petróleo.
A dinamização da economia nacional tendo como motor o Estado, eixo da política econômica correísta, significou que os setores empresariais e financeiros foram os principais beneficiados em uma ação que carecia de riscos para os investimentos privados, pois se fazia base do erário público.
O respeito demonstrado pelo governo correísta à matriz de acumulação herdada da era neoliberal acarretou na inexistência da mais mínima transformação de caráter estrutural sobre os pilares que fundamentam os eixos constitutivos do poder no Equador; isso, apesar de setores historicamente esquecidos poderem se beneficiar durante o período de bonança de certas políticas assistencialistas, baseadas na transferência do excedente derivado de aprofundamento das políticas extrativistas. De quebra, significou que enquanto se ancorava em um propagandístico discurso soberanista, no interior do país se piorava cada vez mais a dependência econômica internacional dos mercados especulativos globais e se reprimarizassem substancialmente a economia global.
O modelo econômico funcionou e inclusive gozou de amplo apoio popular, milagre econômico diziam, enquanto durou o boom das commodities, indo abaixo toda a engrenagem das políticas sociais e econômicas correístas a partir da queda do preço do óleo cru em 2013.
É a partir de então, quando começam a se deteriorar certos serviços públicos, que a economia nacional se paralisa, o consumo interno cai e os indicadores de diminuição da pobreza e incremento da capacidade aquisitiva por parte dos trabalhadores passa a decair.
Em fevereiro de 2014, o governo do presidente Rafael Correa começaria a sentir o desgaste político de seu mandato, perdendo as eleições seccionais e as principais prefeituras do país para partidos de oposição. Os setores empresariais que em outro momento tinham sido beneficiados pelas políticas correístas, entendem ser hora de diminuir o gasto público, reduzir o volume do Estado e voltar a liberalizar a economia. Ante a nova falta de liquidez do Estado equatoriano, este deixou de ser funcional para seguir dinamizando a economia nacional, de modo que voltou a se colocar em questão a política de subsídios sociais.
O anterior significou incremento das mobilizações populares no conjunto do país e derivou em uma convocatória de greve/mobilização em agosto de 2015, de parte do movimento indígena e do sindicalismo não clientelista, que terminou vergonhosamente reprimida pelas forças de segurança do Estado.
O conflito entre Correa e Moreno
Em tais condições, e em meio a uma agressiva política de endividamento público que derivou na superação do volume atual de dívida externa, com sobras, dos níveis herdados da época neoliberal, o então mandatário equatoriano decidiu não se apresentar às eleições de 2017, mas deixou aberta a porta para uma nova postulação em 2021.
Estrategicamente, o correísmo considerou que era melhor outro mandatário a proceder as políticas econômicas de ajuste já inapelavelmente necessárias ao país, permitindo assim uma regeneração da imagem de Rafael Correa, que estrategicamente voltaria em 2021 para “salvar” o Equador dos programas de ajuste, frutos de um déficit bruto, galopante e insustentável. Assim, em dezembro de 2015, a bancada oficialista aprovou forçosamente uma reforma constitucional que permitia a reeleição do mandatário para o período imediatamente posterior a uma legislatura marcada pela crise econômica herdada da gestão de saída.
Ainda assim, a estratégia para a volta ao poder de Correa passava pela necessidade de seguir controlando o aparato de Estado durante o atual período, bloqueando qualquer possibilidade de fiscalização e auditorias internas que pudesse se fazer sobre um modelo de gestão pública altamente corrupto, que significou durante dez anos a submissão de todos os poderes e órgãos de controle do Estado pelo Executivo.
Isso implicou na necessidade de a Aliança PAIS ganhar em 2017, ficando a maior parte das instituições públicas em mãos de ex-funcionários de provada proximidade com o ex-presidente. A única figura com a qual a Aliança PAIS contava para ganhar tais eleições era Lenin Moreno, que por suas funções de enviado especial do Secretário Geral da ONU sobre a Incapacidade e Acessibilidade residia em Genebra desde 2014, o que implicava no fato de ter se mantido à margem da degradação correísta dos últimos anos.
Devemos nos remeter mais atrás no passado histórico do Equador para encontrar um mandatário que depois de dez anos de gestão continuada do poder terminou seu período com certo respaldo político – apesar da decadência dos últimos anos – como era o caso de Rafael Correa. Apesar da polarização social criada ao redor de sua figura, Correa abandonou a poltrona presidencial ainda sob importante apoio social, fundamentalmente entre os setores populares, os quais reconheciam o impulso a projetos sociais de caráter assistencialista e o investimento realizado durante a última década no âmbito da infraestrutura e modernização do Estado. Ainda assim, foi uma grande concatenação acelerada de erros políticos estratégicos que fizeram com que o ex-mandatário perdesse a hegemonia política ainda mantida no país.
Com a chegada da nova administração de Lenin, o correísmo deixava em postos estratégicos grande parte de sua equipe anterior de gestão. Isso significava que mantinha o controle sobre enorme e desmedido aparato de propaganda governamental, articulado na década passada, tal como se fazia a respeito do controle sobre a produção – sobre a qual o Estado equatoriano tinha notável incidência durante os últimos dez anos – no altar das responsabilidades estabelecidas em torno da figura do vice-presidente da República, Jorge Glas, o principal homem de confiança de Rafael Correa no novo gabinete, que se mantinha como responsável da mudança de matriz produtiva e investimento em megaprojetos.
Mas ao tempo, o correísmo mantinha o controle também sobre a frente política do governo através de figuras como a primeira titular da Secretaria Nacional de Gestão Pública (Paola Pabón) e do conselheiro presidencial (Ricardo Patiño), o principal operador político dentro da Aliança PAIS durante a gestão anterior, tal como fazia a respeito da Assembleia Nacional – o legislativo equatoriano – através de seus operadores na bancada majoritária da Aliança PAIS.
Não contente, Rafael Correa controlava também, mediante o Conselho de Participação Cidadã e Controle Social, os órgãos de fiscalização e controle do aparato de Estado, cuja designação de responsável respondia integralmente a personalidades afinadas ao ex-presidente. Isso ocorreu em instituições como o Conselho Nacional Eleitoral, a Corte Constitucional, a Controladoria Geral do Estado, a Procuradoria Geral do Estado, o Tribunal Contencioso Eleitoral, o Conselho do Judiciário ou a Defensoria do Povo, entre outros.
Apesar das tensões entre Lenin Moreno e a ala dura correísta serem palpáveis, desde esse mesmo momento, da investidura do atual presidente da República, em 24 de maio passado, momento em que a nova administração descobriu o estado real das finanças públicas, foi a entrega da sede social da CONAIE – estrutura organizativa do movimento indígena e organização social mais importante do país – e o anúncio em julho passado dos primeiros indultos de líderes populares criminalizados durante o regime anterior que geraram reações desqualificadoras de Rafael Correa sobre seu sucessor.
A partir daí os operadores correístas localizados em funções de direção dos distintos meios públicos começam a articular uma campanha contra a imagem do presidente Moreno, aduzindo que o país voltava às políticas do passado e que se estava produzindo uma divisão de poderes com as elites oligárquicas, o que significou que a nova administração morenista nomeasse novos responsáveis em tais meios de comunicação e órgãos. Desta maneira, o ex-presidente Correa perdia o controle do imenso aparato de propaganda e comunicação cuja criação havia sido auspiciada por ele mesmo.
Um mês depois, em inícios de agosto e já com a água no pescoço pelas investigações judiciais que se faziam a respeito da trama da Odebrecht no Equador, o então vice-presidente Jorge Glas – que fora também o segundo mandatário durante a última fase da era Correa – emitia uma extensa carta pública contra o atual chefe de Estado, acusando-o de convergir com os setores politicamente mais reacionários do país. A ruptura de relações entre o presidente Moreno e Jorge Glas acarretou na inabilitação do cargo do segundo, o que trouxe a perda de controle por parte de Rafael Correa sobre o aparato produtivo e os investimentos nos megaprojetos implementados no país. Meses mais tarde e fruto de investigações judiciais anticorrupção, Jorge Glas terminaria ocupando uma cela na prisão número 4 de Quito e destituído do cargo. O correísmo perdia, portanto, também sua incidência no aparato produtivo.
Poucos dias depois do exabrupto vice-presidencial e em vias de solucionar este conflito, o presidente Moreno enviaria a Bruxelas – lugar de residência atual de Correa – os principais operadores políticos de governo, todos eles vinculados durante a gestão anterior do ex-mandatário, com o fim de reconduzir de forma amigável as relações com o ex-presidente. Para surpresa do Executivo, depois da volta a Quito da dita delegação, suas principais cabeças – Ricardo Patiño, Paola Pabón e Virgílio Hernandez – anunciavam em coletiva de imprensa a renúncia a seus cargos no Executivo. Desta maneira, Rafael Correa perdia o controle da frente política governamental.
Destruídos todos os canais de comunicação entre o correísmo e o governo morenista, o presidente Moreno anunciaria nos primeiros meses de outubro passado a convocação de uma Consulta Popular onde algumas perguntas tinham a ver com uma lógica de reforma institucional pós-caudilhista que levasse o país a um caminho de superação do regime anterior. Isso terminaria de dinamitar internamente o partido do governo. Os setores afins ao ex-mandatário determinaram a expulsão, de forma irregular, de Lenin Moreno da Aliança PAIS convocando sem legitimidade jurídica uma convenção nacional da organização política com escasso êxito de adesão. O fato anterior acarretou, depois de uma decisão do Tribunal Contencioso Eleitoral, na perda do correísmo do controle do próprio partido.
O último episódio deste mar de desacertos correístas se deu já em janeiro do presente ano, quando Correa chamou à desfiliação seus seguidores de Aliança PAIS, o que implicou também na perda de controle do legislativo, ficando com apenas 29 parlamentares, enquanto os outros 45 se alinharam a Lenín Moreno.
Em suma, apesar de ser difícil encontrar um ex-presidente que depois de dez anos de gestão mantivesse o nível de apoio de Correa, também é difícil encontrar algum que tenha demonstrado tal capacidade para dilapidá-lo tão rapidamente.
Consulta e pós-consulta
Foi assim que se chegou a 4 de fevereiro, momento em que o correísmo saboreou pela primeira vez uma derrota eleitoral. No fundo, assistimos algo que foi mais além da realização política de uma realidade indiscutível no Equador: o correísmo nunca construiu uma força social e política afim, mas utilizou o aparato de Estado operando sob lógicas clientelistas em favor de um partido de governo e da construção da imagem midiática de Rafael Correa como um grande caudilho populista. Isso implicou em que, após o abandono da cadeira presidencial e da recusa de seus caprichos nas instituições do Estado, seu apoio político diminuísse notavelmente.
A sociedade equatoriana votou pela conformação de um regime de transição que permitia superar a herança implantada pelo governo anterior, gerando as condições para a construção de um novo cenário político após o fim da hegemonia correísta. Foi cortado o cordão umbilical que vinculava o novo governo ao anterior, o que desabilita a narrativa correísta de que Lenin Moreno ocupa a presidência do país graças ao endosso de votos derivado da figura de Rafael Correa.
Após a consulta o país entra em uma nova fase política. Por um lado, o presidente Lenin Moreno ganhou momentaneamente sua disputa com o antecessor, apesar de Correa ainda manter um terço do eleitorado equatoriano. Correa e seus seguidores, após a desfiliação da Aliança PAIS, estão obrigados a conformar um novo movimento político nacional, apesar de a popularidade de seu líder estar em decadência. Correa, consciente de que o setor de antigos líderes da Aliança PAIS que o acompanham nesta nova aventura acrescentam realmente pouco, dada a má imagem diante da sociedade, está obrigado a liderar pessoalmente a construção do novo partido. Será uma tarefa urgente e nada fácil para o neocorreísmo criar uma nova figura política que tenha chances de disputar a presidência da República em 2021.
Por sua parte, a vontade de tal tendência é ocupar o espaço político da esquerda equatoriana, algo que já fizeram em 2006, apesar dos desencontros entre seu discurso e sua prática. Conseguir tal objetivo passa por bloquear qualquer possibilidade de construção de alternativas políticas no campo popular, algo urgentemente necessário para um país que sofre de uma esquerda cujo discurso político se encontra sem capacidade de sintonia com a sociedade, onde não existe geração de novas lideranças, e que se vê carente de construir uma proposta convincente para um novo modelo de sociedade e país.
Apesar de ser certo que a esquerda política e social equatoriana foi fracionada, em muitos casos cooptada e até perseguida pelo regime correísta durante os últimos dez anos, também é certo que existe uma incapacidade política por parte de sua endogâmica dirigência para se reinventar e reposicionar, com um discurso adaptado ao momento atual do país. O mero fato de que grande parte de tal esquerda apoiou em sua lógica anticorreísta a candidatura do conservador Guillermo Lasso no segundo turno das últimas eleições presidenciais é uma demonstração palpável de sua desorientação política e descrédito do que atualmente gozam na cidadania equatoriana. Nas fileiras conservadoras, as forças políticas que até o momento decidiram não fazer oposição política contumaz ao atual governo mudaram de atitude.
A proximidade de eleições seccionais, daqui um ano, faz as organizações políticas da direita voltarem a assumir protagonismo depois de uma aliança antinatural que permitiu a sensibilidades ideológicas muito diferentes um pacto de não agressão em troca de trabalharem, todos juntos, pelo Sim nesta consulta, em nome da finalidade de enterrar politicamente o correísmo.
Meios de comunicação, setores empresariais e forças políticas conservadoras já anunciaram mudanças sobre sua ação diante do governo de Lenín Moreno, o que significará o aumento da pressão política e possivelmente de manifestações de rua, no sentido de que o governo adote posições mais reacionárias fundamentalmente no âmbito da política econômica.
Em todo caso, os setores da direita se mantêm divididos, existindo duas cabeças, até agora politicamente enfrentadas, que respondem a grupos de interesses diferentes. Tanto Guillermo Lasso, de forma aberta, como Jaime Nebot, de maneira mais sutil, aspiram à presidência da República no ano de 2021 ou até antes, se forem capazes de forçar o fim antecipado do mandato morenista, um governo sobre o qual visualizam debilidades não existentes no anterior.
Portanto, o governo nacional enfrenta uma situação inédita a partir de agora, a qual consistirá em receber de forma indiscriminada ataques tanto da direita – inclusive meios de comunicação privados e lobbies empresariais como nesta pretendida nova esquerda correísta. Que Lenín Moreno e sua equipe de gestão sejam capazes de fazer frente a tais pressões está por ser visto. De todo modo, a estratégia de um e outro lado já começou, em alguns casos até com apoio internacional, tal como no caso de Correa, que em breve disporá da plataforma televisiva Russian Today (RT), um meio de comunicação sensacionalista a serviço do aparato de propaganda de Vladimir Putin, como ferramenta de ataque ao atual governo.
Em 4 de fevereiro o
povo equatoriano decidiu terminar com a hegemonia correísta que dominou
o país nos últimos 11 anos. Dois de cada três cidadãos votaram a favor
das perguntas da Consulta Popular impulsionada pelo Governo Nacional, em
uma lógica de disputa auspiciada pelo ex-mandatário Rafael Correa,
produzindo-se pela primeira vez na história uma rejeição cidadã
majoritária aos seus postulados políticos. Até então – mediante
consultas populares, plebiscitos, referendos – o ex-presidente Correa
havia chegado a acumular em apenas dez anos doze vitórias consecutivas
nas urnas.
Das sete perguntas impulsionadas pelo Executivo, as três primeiras tinham relação direta com o correísmo, abordando temas como:
• A supressão de direitos políticos de condenados por corrupção, o que afeta a um número cada vez maior de altos funcionários que formaram parte do núcleo de poder do regime anterior – já há uma dezena de ex-ministros correístas que se encontram imputados em diferentes processos e este número aumentará – e que poderia terminar afetando o próprio Rafael Correa.
• A eliminação da emenda constitucional aprovada na última fase do governo anterior, pela qual implementava a reeleição indefinida nos cargos de gestão pública a partir de 2021, e que permitia a Correa voltar a se apresentar, tal como era sua intenção, no próximo pleito presidencial;
• E a recomposição do Conselho de Participação Cidadã e Controle Social – popularmente conhecido como o quinto poder constitucional – cujos membros designavam parte dos titulares das instituições do país, o que permitiu ao aparato correísta seguir controlando a estrutura do Estado, apesar de o ex-presidente não ocupar mais o cargo máximo.
O que foi o correísmo?
Compreender a situação atual do Equador significa entender o que foi isso que se convencionou chamar de correísmo e porque deixou de ser funcional neste momento para as elites equatorianas.
Desde 1997, a partir do governo de Abdalá Bucaram, o Equador inaugurou uma etapa de crise institucional permanente que fez com que nenhum presidente eleito desde então nas urnas conseguisse terminar o mandato.
Evidentemente, isso gerava grande instabilidade política e se tornou um fator de desequilíbrio importante a respeito de uma política de investimentos que se faziam cada vez mais urgentes e necessárias para a modernização capitalista que o país deveria empreender após a crise financeira de 1999 e 2000.
Com a entrada do presente século, a economia mundial se estabilizou, superando várias e importantes crises sofridas em diversos países do mundo – México e Venezuela (1994), Tailândia, Indonésia, Filipinas, Taiwan, Coreia do Sul (1997), Rússia (1998), Brasil (1999) ou Argentina (2001) – o que permitiu a melhora econômica internacional, com taxas de crescimento de 4% a 6% no começo da década, até a chegada da crise financeira global de 2008.
Da mesma forma, desde 2003 os preços das commodities aumentaram pelos efeitos dos furacões, como o Katrina, em instalações petroleiras; o crescimento na economia; e, particularmente, pelo auge da indústria da construção, que terminou em uma bolha especulativa cuja explosão fez os investidores voltarem suas pautas a mercados especulativos, tais como de ouro e petróleo, causando uma superdemanda artificial, o que fez o preço do óleo cru chegar ao seu ápice de 147,27 dólares o barril, em julho de 2008.
Neste contexto, o óleo cru equatoriano, que depende da cotização do petróleo norte-americano West Texas Intermediate (WTI) – que é o parâmetro de óleo cru nos EUA - e basicamente é vendido tanto pela PetroEcuador como pelas companhias privadas estrangeiras do país, também elevou notavelmente seus preços.
Sendo um país economicamente dependente de tal produto, o crescimento médio do PIB equatoriano durante a primeira década do presente século foi de 4,4%, enquanto durante os dez anos anteriores tal indicador não superou 1,8%. O anterior indica que a partir do ano 2000, a economia equatoriana começou a consolidar em grande medida apoiada pelas condições favoráveis – preço do petróleo e remessas provenientes dos migrantes – gerando-se as condições adequadas para uma modernização tardia do sistema capitalista nacional.
Neste contexto, o setor mais dinâmico do capital nacional entendeu que poderia melhorar suas possibilidades de negócio propiciando um maior nível de consumo nos mercados internos através de certa divisão do excedente petroleiro – não da distribuição da riqueza que continua em mãos de poucos – e a incorporação ao mercado de setores populares mediante o endividamento familiar e financeirização popular (democratização do consumo com base em empréstimos do setor financeiro privado). Este é o papel que fundamentalmente desempenhou o governo de Rafael Correa durante o último período de bonança econômica no Equador.
Ao largo da primeira década do presente século, a maior fatia de participação no PIB da economia nacional foi o consumo privado, o qual representou uma média de 66,6% do PIB, convertendo-se em fator de maior contribuição ao crescimento nacional durante o período prévio à queda de preços do petróleo.
A dinamização da economia nacional tendo como motor o Estado, eixo da política econômica correísta, significou que os setores empresariais e financeiros foram os principais beneficiados em uma ação que carecia de riscos para os investimentos privados, pois se fazia base do erário público.
O respeito demonstrado pelo governo correísta à matriz de acumulação herdada da era neoliberal acarretou na inexistência da mais mínima transformação de caráter estrutural sobre os pilares que fundamentam os eixos constitutivos do poder no Equador; isso, apesar de setores historicamente esquecidos poderem se beneficiar durante o período de bonança de certas políticas assistencialistas, baseadas na transferência do excedente derivado de aprofundamento das políticas extrativistas. De quebra, significou que enquanto se ancorava em um propagandístico discurso soberanista, no interior do país se piorava cada vez mais a dependência econômica internacional dos mercados especulativos globais e se reprimarizassem substancialmente a economia global.
O modelo econômico funcionou e inclusive gozou de amplo apoio popular, milagre econômico diziam, enquanto durou o boom das commodities, indo abaixo toda a engrenagem das políticas sociais e econômicas correístas a partir da queda do preço do óleo cru em 2013.
É a partir de então, quando começam a se deteriorar certos serviços públicos, que a economia nacional se paralisa, o consumo interno cai e os indicadores de diminuição da pobreza e incremento da capacidade aquisitiva por parte dos trabalhadores passa a decair.
Em fevereiro de 2014, o governo do presidente Rafael Correa começaria a sentir o desgaste político de seu mandato, perdendo as eleições seccionais e as principais prefeituras do país para partidos de oposição. Os setores empresariais que em outro momento tinham sido beneficiados pelas políticas correístas, entendem ser hora de diminuir o gasto público, reduzir o volume do Estado e voltar a liberalizar a economia. Ante a nova falta de liquidez do Estado equatoriano, este deixou de ser funcional para seguir dinamizando a economia nacional, de modo que voltou a se colocar em questão a política de subsídios sociais.
O anterior significou incremento das mobilizações populares no conjunto do país e derivou em uma convocatória de greve/mobilização em agosto de 2015, de parte do movimento indígena e do sindicalismo não clientelista, que terminou vergonhosamente reprimida pelas forças de segurança do Estado.
O conflito entre Correa e Moreno
Em tais condições, e em meio a uma agressiva política de endividamento público que derivou na superação do volume atual de dívida externa, com sobras, dos níveis herdados da época neoliberal, o então mandatário equatoriano decidiu não se apresentar às eleições de 2017, mas deixou aberta a porta para uma nova postulação em 2021.
Estrategicamente, o correísmo considerou que era melhor outro mandatário a proceder as políticas econômicas de ajuste já inapelavelmente necessárias ao país, permitindo assim uma regeneração da imagem de Rafael Correa, que estrategicamente voltaria em 2021 para “salvar” o Equador dos programas de ajuste, frutos de um déficit bruto, galopante e insustentável. Assim, em dezembro de 2015, a bancada oficialista aprovou forçosamente uma reforma constitucional que permitia a reeleição do mandatário para o período imediatamente posterior a uma legislatura marcada pela crise econômica herdada da gestão de saída.
Ainda assim, a estratégia para a volta ao poder de Correa passava pela necessidade de seguir controlando o aparato de Estado durante o atual período, bloqueando qualquer possibilidade de fiscalização e auditorias internas que pudesse se fazer sobre um modelo de gestão pública altamente corrupto, que significou durante dez anos a submissão de todos os poderes e órgãos de controle do Estado pelo Executivo.
Isso implicou na necessidade de a Aliança PAIS ganhar em 2017, ficando a maior parte das instituições públicas em mãos de ex-funcionários de provada proximidade com o ex-presidente. A única figura com a qual a Aliança PAIS contava para ganhar tais eleições era Lenin Moreno, que por suas funções de enviado especial do Secretário Geral da ONU sobre a Incapacidade e Acessibilidade residia em Genebra desde 2014, o que implicava no fato de ter se mantido à margem da degradação correísta dos últimos anos.
Devemos nos remeter mais atrás no passado histórico do Equador para encontrar um mandatário que depois de dez anos de gestão continuada do poder terminou seu período com certo respaldo político – apesar da decadência dos últimos anos – como era o caso de Rafael Correa. Apesar da polarização social criada ao redor de sua figura, Correa abandonou a poltrona presidencial ainda sob importante apoio social, fundamentalmente entre os setores populares, os quais reconheciam o impulso a projetos sociais de caráter assistencialista e o investimento realizado durante a última década no âmbito da infraestrutura e modernização do Estado. Ainda assim, foi uma grande concatenação acelerada de erros políticos estratégicos que fizeram com que o ex-mandatário perdesse a hegemonia política ainda mantida no país.
Com a chegada da nova administração de Lenin, o correísmo deixava em postos estratégicos grande parte de sua equipe anterior de gestão. Isso significava que mantinha o controle sobre enorme e desmedido aparato de propaganda governamental, articulado na década passada, tal como se fazia a respeito do controle sobre a produção – sobre a qual o Estado equatoriano tinha notável incidência durante os últimos dez anos – no altar das responsabilidades estabelecidas em torno da figura do vice-presidente da República, Jorge Glas, o principal homem de confiança de Rafael Correa no novo gabinete, que se mantinha como responsável da mudança de matriz produtiva e investimento em megaprojetos.
Mas ao tempo, o correísmo mantinha o controle também sobre a frente política do governo através de figuras como a primeira titular da Secretaria Nacional de Gestão Pública (Paola Pabón) e do conselheiro presidencial (Ricardo Patiño), o principal operador político dentro da Aliança PAIS durante a gestão anterior, tal como fazia a respeito da Assembleia Nacional – o legislativo equatoriano – através de seus operadores na bancada majoritária da Aliança PAIS.
Não contente, Rafael Correa controlava também, mediante o Conselho de Participação Cidadã e Controle Social, os órgãos de fiscalização e controle do aparato de Estado, cuja designação de responsável respondia integralmente a personalidades afinadas ao ex-presidente. Isso ocorreu em instituições como o Conselho Nacional Eleitoral, a Corte Constitucional, a Controladoria Geral do Estado, a Procuradoria Geral do Estado, o Tribunal Contencioso Eleitoral, o Conselho do Judiciário ou a Defensoria do Povo, entre outros.
Apesar das tensões entre Lenin Moreno e a ala dura correísta serem palpáveis, desde esse mesmo momento, da investidura do atual presidente da República, em 24 de maio passado, momento em que a nova administração descobriu o estado real das finanças públicas, foi a entrega da sede social da CONAIE – estrutura organizativa do movimento indígena e organização social mais importante do país – e o anúncio em julho passado dos primeiros indultos de líderes populares criminalizados durante o regime anterior que geraram reações desqualificadoras de Rafael Correa sobre seu sucessor.
A partir daí os operadores correístas localizados em funções de direção dos distintos meios públicos começam a articular uma campanha contra a imagem do presidente Moreno, aduzindo que o país voltava às políticas do passado e que se estava produzindo uma divisão de poderes com as elites oligárquicas, o que significou que a nova administração morenista nomeasse novos responsáveis em tais meios de comunicação e órgãos. Desta maneira, o ex-presidente Correa perdia o controle do imenso aparato de propaganda e comunicação cuja criação havia sido auspiciada por ele mesmo.
Um mês depois, em inícios de agosto e já com a água no pescoço pelas investigações judiciais que se faziam a respeito da trama da Odebrecht no Equador, o então vice-presidente Jorge Glas – que fora também o segundo mandatário durante a última fase da era Correa – emitia uma extensa carta pública contra o atual chefe de Estado, acusando-o de convergir com os setores politicamente mais reacionários do país. A ruptura de relações entre o presidente Moreno e Jorge Glas acarretou na inabilitação do cargo do segundo, o que trouxe a perda de controle por parte de Rafael Correa sobre o aparato produtivo e os investimentos nos megaprojetos implementados no país. Meses mais tarde e fruto de investigações judiciais anticorrupção, Jorge Glas terminaria ocupando uma cela na prisão número 4 de Quito e destituído do cargo. O correísmo perdia, portanto, também sua incidência no aparato produtivo.
Poucos dias depois do exabrupto vice-presidencial e em vias de solucionar este conflito, o presidente Moreno enviaria a Bruxelas – lugar de residência atual de Correa – os principais operadores políticos de governo, todos eles vinculados durante a gestão anterior do ex-mandatário, com o fim de reconduzir de forma amigável as relações com o ex-presidente. Para surpresa do Executivo, depois da volta a Quito da dita delegação, suas principais cabeças – Ricardo Patiño, Paola Pabón e Virgílio Hernandez – anunciavam em coletiva de imprensa a renúncia a seus cargos no Executivo. Desta maneira, Rafael Correa perdia o controle da frente política governamental.
Destruídos todos os canais de comunicação entre o correísmo e o governo morenista, o presidente Moreno anunciaria nos primeiros meses de outubro passado a convocação de uma Consulta Popular onde algumas perguntas tinham a ver com uma lógica de reforma institucional pós-caudilhista que levasse o país a um caminho de superação do regime anterior. Isso terminaria de dinamitar internamente o partido do governo. Os setores afins ao ex-mandatário determinaram a expulsão, de forma irregular, de Lenin Moreno da Aliança PAIS convocando sem legitimidade jurídica uma convenção nacional da organização política com escasso êxito de adesão. O fato anterior acarretou, depois de uma decisão do Tribunal Contencioso Eleitoral, na perda do correísmo do controle do próprio partido.
O último episódio deste mar de desacertos correístas se deu já em janeiro do presente ano, quando Correa chamou à desfiliação seus seguidores de Aliança PAIS, o que implicou também na perda de controle do legislativo, ficando com apenas 29 parlamentares, enquanto os outros 45 se alinharam a Lenín Moreno.
Em suma, apesar de ser difícil encontrar um ex-presidente que depois de dez anos de gestão mantivesse o nível de apoio de Correa, também é difícil encontrar algum que tenha demonstrado tal capacidade para dilapidá-lo tão rapidamente.
Consulta e pós-consulta
Foi assim que se chegou a 4 de fevereiro, momento em que o correísmo saboreou pela primeira vez uma derrota eleitoral. No fundo, assistimos algo que foi mais além da realização política de uma realidade indiscutível no Equador: o correísmo nunca construiu uma força social e política afim, mas utilizou o aparato de Estado operando sob lógicas clientelistas em favor de um partido de governo e da construção da imagem midiática de Rafael Correa como um grande caudilho populista. Isso implicou em que, após o abandono da cadeira presidencial e da recusa de seus caprichos nas instituições do Estado, seu apoio político diminuísse notavelmente.
A sociedade equatoriana votou pela conformação de um regime de transição que permitia superar a herança implantada pelo governo anterior, gerando as condições para a construção de um novo cenário político após o fim da hegemonia correísta. Foi cortado o cordão umbilical que vinculava o novo governo ao anterior, o que desabilita a narrativa correísta de que Lenin Moreno ocupa a presidência do país graças ao endosso de votos derivado da figura de Rafael Correa.
Após a consulta o país entra em uma nova fase política. Por um lado, o presidente Lenin Moreno ganhou momentaneamente sua disputa com o antecessor, apesar de Correa ainda manter um terço do eleitorado equatoriano. Correa e seus seguidores, após a desfiliação da Aliança PAIS, estão obrigados a conformar um novo movimento político nacional, apesar de a popularidade de seu líder estar em decadência. Correa, consciente de que o setor de antigos líderes da Aliança PAIS que o acompanham nesta nova aventura acrescentam realmente pouco, dada a má imagem diante da sociedade, está obrigado a liderar pessoalmente a construção do novo partido. Será uma tarefa urgente e nada fácil para o neocorreísmo criar uma nova figura política que tenha chances de disputar a presidência da República em 2021.
Por sua parte, a vontade de tal tendência é ocupar o espaço político da esquerda equatoriana, algo que já fizeram em 2006, apesar dos desencontros entre seu discurso e sua prática. Conseguir tal objetivo passa por bloquear qualquer possibilidade de construção de alternativas políticas no campo popular, algo urgentemente necessário para um país que sofre de uma esquerda cujo discurso político se encontra sem capacidade de sintonia com a sociedade, onde não existe geração de novas lideranças, e que se vê carente de construir uma proposta convincente para um novo modelo de sociedade e país.
Apesar de ser certo que a esquerda política e social equatoriana foi fracionada, em muitos casos cooptada e até perseguida pelo regime correísta durante os últimos dez anos, também é certo que existe uma incapacidade política por parte de sua endogâmica dirigência para se reinventar e reposicionar, com um discurso adaptado ao momento atual do país. O mero fato de que grande parte de tal esquerda apoiou em sua lógica anticorreísta a candidatura do conservador Guillermo Lasso no segundo turno das últimas eleições presidenciais é uma demonstração palpável de sua desorientação política e descrédito do que atualmente gozam na cidadania equatoriana. Nas fileiras conservadoras, as forças políticas que até o momento decidiram não fazer oposição política contumaz ao atual governo mudaram de atitude.
A proximidade de eleições seccionais, daqui um ano, faz as organizações políticas da direita voltarem a assumir protagonismo depois de uma aliança antinatural que permitiu a sensibilidades ideológicas muito diferentes um pacto de não agressão em troca de trabalharem, todos juntos, pelo Sim nesta consulta, em nome da finalidade de enterrar politicamente o correísmo.
Meios de comunicação, setores empresariais e forças políticas conservadoras já anunciaram mudanças sobre sua ação diante do governo de Lenín Moreno, o que significará o aumento da pressão política e possivelmente de manifestações de rua, no sentido de que o governo adote posições mais reacionárias fundamentalmente no âmbito da política econômica.
Em todo caso, os setores da direita se mantêm divididos, existindo duas cabeças, até agora politicamente enfrentadas, que respondem a grupos de interesses diferentes. Tanto Guillermo Lasso, de forma aberta, como Jaime Nebot, de maneira mais sutil, aspiram à presidência da República no ano de 2021 ou até antes, se forem capazes de forçar o fim antecipado do mandato morenista, um governo sobre o qual visualizam debilidades não existentes no anterior.
Portanto, o governo nacional enfrenta uma situação inédita a partir de agora, a qual consistirá em receber de forma indiscriminada ataques tanto da direita – inclusive meios de comunicação privados e lobbies empresariais como nesta pretendida nova esquerda correísta. Que Lenín Moreno e sua equipe de gestão sejam capazes de fazer frente a tais pressões está por ser visto. De todo modo, a estratégia de um e outro lado já começou, em alguns casos até com apoio internacional, tal como no caso de Correa, que em breve disporá da plataforma televisiva Russian Today (RT), um meio de comunicação sensacionalista a serviço do aparato de propaganda de Vladimir Putin, como ferramenta de ataque ao atual governo.
Das sete perguntas impulsionadas pelo Executivo, as três primeiras tinham relação direta com o correísmo, abordando temas como:
• A supressão de direitos políticos de condenados por corrupção, o que afeta a um número cada vez maior de altos funcionários que formaram parte do núcleo de poder do regime anterior – já há uma dezena de ex-ministros correístas que se encontram imputados em diferentes processos e este número aumentará – e que poderia terminar afetando o próprio Rafael Correa.
• A eliminação da emenda constitucional aprovada na última fase do governo anterior, pela qual implementava a reeleição indefinida nos cargos de gestão pública a partir de 2021, e que permitia a Correa voltar a se apresentar, tal como era sua intenção, no próximo pleito presidencial;
• E a recomposição do Conselho de Participação Cidadã e Controle Social – popularmente conhecido como o quinto poder constitucional – cujos membros designavam parte dos titulares das instituições do país, o que permitiu ao aparato correísta seguir controlando a estrutura do Estado, apesar de o ex-presidente não ocupar mais o cargo máximo.
O que foi o correísmo?
Compreender a situação atual do Equador significa entender o que foi isso que se convencionou chamar de correísmo e porque deixou de ser funcional neste momento para as elites equatorianas.
Desde 1997, a partir do governo de Abdalá Bucaram, o Equador inaugurou uma etapa de crise institucional permanente que fez com que nenhum presidente eleito desde então nas urnas conseguisse terminar o mandato.
Evidentemente, isso gerava grande instabilidade política e se tornou um fator de desequilíbrio importante a respeito de uma política de investimentos que se faziam cada vez mais urgentes e necessárias para a modernização capitalista que o país deveria empreender após a crise financeira de 1999 e 2000.
Com a entrada do presente século, a economia mundial se estabilizou, superando várias e importantes crises sofridas em diversos países do mundo – México e Venezuela (1994), Tailândia, Indonésia, Filipinas, Taiwan, Coreia do Sul (1997), Rússia (1998), Brasil (1999) ou Argentina (2001) – o que permitiu a melhora econômica internacional, com taxas de crescimento de 4% a 6% no começo da década, até a chegada da crise financeira global de 2008.
Da mesma forma, desde 2003 os preços das commodities aumentaram pelos efeitos dos furacões, como o Katrina, em instalações petroleiras; o crescimento na economia; e, particularmente, pelo auge da indústria da construção, que terminou em uma bolha especulativa cuja explosão fez os investidores voltarem suas pautas a mercados especulativos, tais como de ouro e petróleo, causando uma superdemanda artificial, o que fez o preço do óleo cru chegar ao seu ápice de 147,27 dólares o barril, em julho de 2008.
Neste contexto, o óleo cru equatoriano, que depende da cotização do petróleo norte-americano West Texas Intermediate (WTI) – que é o parâmetro de óleo cru nos EUA - e basicamente é vendido tanto pela PetroEcuador como pelas companhias privadas estrangeiras do país, também elevou notavelmente seus preços.
Sendo um país economicamente dependente de tal produto, o crescimento médio do PIB equatoriano durante a primeira década do presente século foi de 4,4%, enquanto durante os dez anos anteriores tal indicador não superou 1,8%. O anterior indica que a partir do ano 2000, a economia equatoriana começou a consolidar em grande medida apoiada pelas condições favoráveis – preço do petróleo e remessas provenientes dos migrantes – gerando-se as condições adequadas para uma modernização tardia do sistema capitalista nacional.
Neste contexto, o setor mais dinâmico do capital nacional entendeu que poderia melhorar suas possibilidades de negócio propiciando um maior nível de consumo nos mercados internos através de certa divisão do excedente petroleiro – não da distribuição da riqueza que continua em mãos de poucos – e a incorporação ao mercado de setores populares mediante o endividamento familiar e financeirização popular (democratização do consumo com base em empréstimos do setor financeiro privado). Este é o papel que fundamentalmente desempenhou o governo de Rafael Correa durante o último período de bonança econômica no Equador.
Ao largo da primeira década do presente século, a maior fatia de participação no PIB da economia nacional foi o consumo privado, o qual representou uma média de 66,6% do PIB, convertendo-se em fator de maior contribuição ao crescimento nacional durante o período prévio à queda de preços do petróleo.
A dinamização da economia nacional tendo como motor o Estado, eixo da política econômica correísta, significou que os setores empresariais e financeiros foram os principais beneficiados em uma ação que carecia de riscos para os investimentos privados, pois se fazia base do erário público.
O respeito demonstrado pelo governo correísta à matriz de acumulação herdada da era neoliberal acarretou na inexistência da mais mínima transformação de caráter estrutural sobre os pilares que fundamentam os eixos constitutivos do poder no Equador; isso, apesar de setores historicamente esquecidos poderem se beneficiar durante o período de bonança de certas políticas assistencialistas, baseadas na transferência do excedente derivado de aprofundamento das políticas extrativistas. De quebra, significou que enquanto se ancorava em um propagandístico discurso soberanista, no interior do país se piorava cada vez mais a dependência econômica internacional dos mercados especulativos globais e se reprimarizassem substancialmente a economia global.
O modelo econômico funcionou e inclusive gozou de amplo apoio popular, milagre econômico diziam, enquanto durou o boom das commodities, indo abaixo toda a engrenagem das políticas sociais e econômicas correístas a partir da queda do preço do óleo cru em 2013.
É a partir de então, quando começam a se deteriorar certos serviços públicos, que a economia nacional se paralisa, o consumo interno cai e os indicadores de diminuição da pobreza e incremento da capacidade aquisitiva por parte dos trabalhadores passa a decair.
Em fevereiro de 2014, o governo do presidente Rafael Correa começaria a sentir o desgaste político de seu mandato, perdendo as eleições seccionais e as principais prefeituras do país para partidos de oposição. Os setores empresariais que em outro momento tinham sido beneficiados pelas políticas correístas, entendem ser hora de diminuir o gasto público, reduzir o volume do Estado e voltar a liberalizar a economia. Ante a nova falta de liquidez do Estado equatoriano, este deixou de ser funcional para seguir dinamizando a economia nacional, de modo que voltou a se colocar em questão a política de subsídios sociais.
O anterior significou incremento das mobilizações populares no conjunto do país e derivou em uma convocatória de greve/mobilização em agosto de 2015, de parte do movimento indígena e do sindicalismo não clientelista, que terminou vergonhosamente reprimida pelas forças de segurança do Estado.
O conflito entre Correa e Moreno
Em tais condições, e em meio a uma agressiva política de endividamento público que derivou na superação do volume atual de dívida externa, com sobras, dos níveis herdados da época neoliberal, o então mandatário equatoriano decidiu não se apresentar às eleições de 2017, mas deixou aberta a porta para uma nova postulação em 2021.
Estrategicamente, o correísmo considerou que era melhor outro mandatário a proceder as políticas econômicas de ajuste já inapelavelmente necessárias ao país, permitindo assim uma regeneração da imagem de Rafael Correa, que estrategicamente voltaria em 2021 para “salvar” o Equador dos programas de ajuste, frutos de um déficit bruto, galopante e insustentável. Assim, em dezembro de 2015, a bancada oficialista aprovou forçosamente uma reforma constitucional que permitia a reeleição do mandatário para o período imediatamente posterior a uma legislatura marcada pela crise econômica herdada da gestão de saída.
Ainda assim, a estratégia para a volta ao poder de Correa passava pela necessidade de seguir controlando o aparato de Estado durante o atual período, bloqueando qualquer possibilidade de fiscalização e auditorias internas que pudesse se fazer sobre um modelo de gestão pública altamente corrupto, que significou durante dez anos a submissão de todos os poderes e órgãos de controle do Estado pelo Executivo.
Isso implicou na necessidade de a Aliança PAIS ganhar em 2017, ficando a maior parte das instituições públicas em mãos de ex-funcionários de provada proximidade com o ex-presidente. A única figura com a qual a Aliança PAIS contava para ganhar tais eleições era Lenin Moreno, que por suas funções de enviado especial do Secretário Geral da ONU sobre a Incapacidade e Acessibilidade residia em Genebra desde 2014, o que implicava no fato de ter se mantido à margem da degradação correísta dos últimos anos.
Devemos nos remeter mais atrás no passado histórico do Equador para encontrar um mandatário que depois de dez anos de gestão continuada do poder terminou seu período com certo respaldo político – apesar da decadência dos últimos anos – como era o caso de Rafael Correa. Apesar da polarização social criada ao redor de sua figura, Correa abandonou a poltrona presidencial ainda sob importante apoio social, fundamentalmente entre os setores populares, os quais reconheciam o impulso a projetos sociais de caráter assistencialista e o investimento realizado durante a última década no âmbito da infraestrutura e modernização do Estado. Ainda assim, foi uma grande concatenação acelerada de erros políticos estratégicos que fizeram com que o ex-mandatário perdesse a hegemonia política ainda mantida no país.
Com a chegada da nova administração de Lenin, o correísmo deixava em postos estratégicos grande parte de sua equipe anterior de gestão. Isso significava que mantinha o controle sobre enorme e desmedido aparato de propaganda governamental, articulado na década passada, tal como se fazia a respeito do controle sobre a produção – sobre a qual o Estado equatoriano tinha notável incidência durante os últimos dez anos – no altar das responsabilidades estabelecidas em torno da figura do vice-presidente da República, Jorge Glas, o principal homem de confiança de Rafael Correa no novo gabinete, que se mantinha como responsável da mudança de matriz produtiva e investimento em megaprojetos.
Mas ao tempo, o correísmo mantinha o controle também sobre a frente política do governo através de figuras como a primeira titular da Secretaria Nacional de Gestão Pública (Paola Pabón) e do conselheiro presidencial (Ricardo Patiño), o principal operador político dentro da Aliança PAIS durante a gestão anterior, tal como fazia a respeito da Assembleia Nacional – o legislativo equatoriano – através de seus operadores na bancada majoritária da Aliança PAIS.
Não contente, Rafael Correa controlava também, mediante o Conselho de Participação Cidadã e Controle Social, os órgãos de fiscalização e controle do aparato de Estado, cuja designação de responsável respondia integralmente a personalidades afinadas ao ex-presidente. Isso ocorreu em instituições como o Conselho Nacional Eleitoral, a Corte Constitucional, a Controladoria Geral do Estado, a Procuradoria Geral do Estado, o Tribunal Contencioso Eleitoral, o Conselho do Judiciário ou a Defensoria do Povo, entre outros.
Apesar das tensões entre Lenin Moreno e a ala dura correísta serem palpáveis, desde esse mesmo momento, da investidura do atual presidente da República, em 24 de maio passado, momento em que a nova administração descobriu o estado real das finanças públicas, foi a entrega da sede social da CONAIE – estrutura organizativa do movimento indígena e organização social mais importante do país – e o anúncio em julho passado dos primeiros indultos de líderes populares criminalizados durante o regime anterior que geraram reações desqualificadoras de Rafael Correa sobre seu sucessor.
A partir daí os operadores correístas localizados em funções de direção dos distintos meios públicos começam a articular uma campanha contra a imagem do presidente Moreno, aduzindo que o país voltava às políticas do passado e que se estava produzindo uma divisão de poderes com as elites oligárquicas, o que significou que a nova administração morenista nomeasse novos responsáveis em tais meios de comunicação e órgãos. Desta maneira, o ex-presidente Correa perdia o controle do imenso aparato de propaganda e comunicação cuja criação havia sido auspiciada por ele mesmo.
Um mês depois, em inícios de agosto e já com a água no pescoço pelas investigações judiciais que se faziam a respeito da trama da Odebrecht no Equador, o então vice-presidente Jorge Glas – que fora também o segundo mandatário durante a última fase da era Correa – emitia uma extensa carta pública contra o atual chefe de Estado, acusando-o de convergir com os setores politicamente mais reacionários do país. A ruptura de relações entre o presidente Moreno e Jorge Glas acarretou na inabilitação do cargo do segundo, o que trouxe a perda de controle por parte de Rafael Correa sobre o aparato produtivo e os investimentos nos megaprojetos implementados no país. Meses mais tarde e fruto de investigações judiciais anticorrupção, Jorge Glas terminaria ocupando uma cela na prisão número 4 de Quito e destituído do cargo. O correísmo perdia, portanto, também sua incidência no aparato produtivo.
Poucos dias depois do exabrupto vice-presidencial e em vias de solucionar este conflito, o presidente Moreno enviaria a Bruxelas – lugar de residência atual de Correa – os principais operadores políticos de governo, todos eles vinculados durante a gestão anterior do ex-mandatário, com o fim de reconduzir de forma amigável as relações com o ex-presidente. Para surpresa do Executivo, depois da volta a Quito da dita delegação, suas principais cabeças – Ricardo Patiño, Paola Pabón e Virgílio Hernandez – anunciavam em coletiva de imprensa a renúncia a seus cargos no Executivo. Desta maneira, Rafael Correa perdia o controle da frente política governamental.
Destruídos todos os canais de comunicação entre o correísmo e o governo morenista, o presidente Moreno anunciaria nos primeiros meses de outubro passado a convocação de uma Consulta Popular onde algumas perguntas tinham a ver com uma lógica de reforma institucional pós-caudilhista que levasse o país a um caminho de superação do regime anterior. Isso terminaria de dinamitar internamente o partido do governo. Os setores afins ao ex-mandatário determinaram a expulsão, de forma irregular, de Lenin Moreno da Aliança PAIS convocando sem legitimidade jurídica uma convenção nacional da organização política com escasso êxito de adesão. O fato anterior acarretou, depois de uma decisão do Tribunal Contencioso Eleitoral, na perda do correísmo do controle do próprio partido.
O último episódio deste mar de desacertos correístas se deu já em janeiro do presente ano, quando Correa chamou à desfiliação seus seguidores de Aliança PAIS, o que implicou também na perda de controle do legislativo, ficando com apenas 29 parlamentares, enquanto os outros 45 se alinharam a Lenín Moreno.
Em suma, apesar de ser difícil encontrar um ex-presidente que depois de dez anos de gestão mantivesse o nível de apoio de Correa, também é difícil encontrar algum que tenha demonstrado tal capacidade para dilapidá-lo tão rapidamente.
Consulta e pós-consulta
Foi assim que se chegou a 4 de fevereiro, momento em que o correísmo saboreou pela primeira vez uma derrota eleitoral. No fundo, assistimos algo que foi mais além da realização política de uma realidade indiscutível no Equador: o correísmo nunca construiu uma força social e política afim, mas utilizou o aparato de Estado operando sob lógicas clientelistas em favor de um partido de governo e da construção da imagem midiática de Rafael Correa como um grande caudilho populista. Isso implicou em que, após o abandono da cadeira presidencial e da recusa de seus caprichos nas instituições do Estado, seu apoio político diminuísse notavelmente.
A sociedade equatoriana votou pela conformação de um regime de transição que permitia superar a herança implantada pelo governo anterior, gerando as condições para a construção de um novo cenário político após o fim da hegemonia correísta. Foi cortado o cordão umbilical que vinculava o novo governo ao anterior, o que desabilita a narrativa correísta de que Lenin Moreno ocupa a presidência do país graças ao endosso de votos derivado da figura de Rafael Correa.
Após a consulta o país entra em uma nova fase política. Por um lado, o presidente Lenin Moreno ganhou momentaneamente sua disputa com o antecessor, apesar de Correa ainda manter um terço do eleitorado equatoriano. Correa e seus seguidores, após a desfiliação da Aliança PAIS, estão obrigados a conformar um novo movimento político nacional, apesar de a popularidade de seu líder estar em decadência. Correa, consciente de que o setor de antigos líderes da Aliança PAIS que o acompanham nesta nova aventura acrescentam realmente pouco, dada a má imagem diante da sociedade, está obrigado a liderar pessoalmente a construção do novo partido. Será uma tarefa urgente e nada fácil para o neocorreísmo criar uma nova figura política que tenha chances de disputar a presidência da República em 2021.
Por sua parte, a vontade de tal tendência é ocupar o espaço político da esquerda equatoriana, algo que já fizeram em 2006, apesar dos desencontros entre seu discurso e sua prática. Conseguir tal objetivo passa por bloquear qualquer possibilidade de construção de alternativas políticas no campo popular, algo urgentemente necessário para um país que sofre de uma esquerda cujo discurso político se encontra sem capacidade de sintonia com a sociedade, onde não existe geração de novas lideranças, e que se vê carente de construir uma proposta convincente para um novo modelo de sociedade e país.
Apesar de ser certo que a esquerda política e social equatoriana foi fracionada, em muitos casos cooptada e até perseguida pelo regime correísta durante os últimos dez anos, também é certo que existe uma incapacidade política por parte de sua endogâmica dirigência para se reinventar e reposicionar, com um discurso adaptado ao momento atual do país. O mero fato de que grande parte de tal esquerda apoiou em sua lógica anticorreísta a candidatura do conservador Guillermo Lasso no segundo turno das últimas eleições presidenciais é uma demonstração palpável de sua desorientação política e descrédito do que atualmente gozam na cidadania equatoriana. Nas fileiras conservadoras, as forças políticas que até o momento decidiram não fazer oposição política contumaz ao atual governo mudaram de atitude.
A proximidade de eleições seccionais, daqui um ano, faz as organizações políticas da direita voltarem a assumir protagonismo depois de uma aliança antinatural que permitiu a sensibilidades ideológicas muito diferentes um pacto de não agressão em troca de trabalharem, todos juntos, pelo Sim nesta consulta, em nome da finalidade de enterrar politicamente o correísmo.
Meios de comunicação, setores empresariais e forças políticas conservadoras já anunciaram mudanças sobre sua ação diante do governo de Lenín Moreno, o que significará o aumento da pressão política e possivelmente de manifestações de rua, no sentido de que o governo adote posições mais reacionárias fundamentalmente no âmbito da política econômica.
Em todo caso, os setores da direita se mantêm divididos, existindo duas cabeças, até agora politicamente enfrentadas, que respondem a grupos de interesses diferentes. Tanto Guillermo Lasso, de forma aberta, como Jaime Nebot, de maneira mais sutil, aspiram à presidência da República no ano de 2021 ou até antes, se forem capazes de forçar o fim antecipado do mandato morenista, um governo sobre o qual visualizam debilidades não existentes no anterior.
Portanto, o governo nacional enfrenta uma situação inédita a partir de agora, a qual consistirá em receber de forma indiscriminada ataques tanto da direita – inclusive meios de comunicação privados e lobbies empresariais como nesta pretendida nova esquerda correísta. Que Lenín Moreno e sua equipe de gestão sejam capazes de fazer frente a tais pressões está por ser visto. De todo modo, a estratégia de um e outro lado já começou, em alguns casos até com apoio internacional, tal como no caso de Correa, que em breve disporá da plataforma televisiva Russian Today (RT), um meio de comunicação sensacionalista a serviço do aparato de propaganda de Vladimir Putin, como ferramenta de ataque ao atual governo.
Em 4 de fevereiro o
povo equatoriano decidiu terminar com a hegemonia correísta que dominou
o país nos últimos 11 anos. Dois de cada três cidadãos votaram a favor
das perguntas da Consulta Popular impulsionada pelo Governo Nacional, em
uma lógica de disputa auspiciada pelo ex-mandatário Rafael Correa,
produzindo-se pela primeira vez na história uma rejeição cidadã
majoritária aos seus postulados políticos. Até então – mediante
consultas populares, plebiscitos, referendos – o ex-presidente Correa
havia chegado a acumular em apenas dez anos doze vitórias consecutivas
nas urnas.
Das sete perguntas impulsionadas pelo Executivo, as três primeiras tinham relação direta com o correísmo, abordando temas como:
• A supressão de direitos políticos de condenados por corrupção, o que afeta a um número cada vez maior de altos funcionários que formaram parte do núcleo de poder do regime anterior – já há uma dezena de ex-ministros correístas que se encontram imputados em diferentes processos e este número aumentará – e que poderia terminar afetando o próprio Rafael Correa.
• A eliminação da emenda constitucional aprovada na última fase do governo anterior, pela qual implementava a reeleição indefinida nos cargos de gestão pública a partir de 2021, e que permitia a Correa voltar a se apresentar, tal como era sua intenção, no próximo pleito presidencial;
• E a recomposição do Conselho de Participação Cidadã e Controle Social – popularmente conhecido como o quinto poder constitucional – cujos membros designavam parte dos titulares das instituições do país, o que permitiu ao aparato correísta seguir controlando a estrutura do Estado, apesar de o ex-presidente não ocupar mais o cargo máximo.
O que foi o correísmo?
Compreender a situação atual do Equador significa entender o que foi isso que se convencionou chamar de correísmo e porque deixou de ser funcional neste momento para as elites equatorianas.
Desde 1997, a partir do governo de Abdalá Bucaram, o Equador inaugurou uma etapa de crise institucional permanente que fez com que nenhum presidente eleito desde então nas urnas conseguisse terminar o mandato.
Evidentemente, isso gerava grande instabilidade política e se tornou um fator de desequilíbrio importante a respeito de uma política de investimentos que se faziam cada vez mais urgentes e necessárias para a modernização capitalista que o país deveria empreender após a crise financeira de 1999 e 2000.
Com a entrada do presente século, a economia mundial se estabilizou, superando várias e importantes crises sofridas em diversos países do mundo – México e Venezuela (1994), Tailândia, Indonésia, Filipinas, Taiwan, Coreia do Sul (1997), Rússia (1998), Brasil (1999) ou Argentina (2001) – o que permitiu a melhora econômica internacional, com taxas de crescimento de 4% a 6% no começo da década, até a chegada da crise financeira global de 2008.
Da mesma forma, desde 2003 os preços das commodities aumentaram pelos efeitos dos furacões, como o Katrina, em instalações petroleiras; o crescimento na economia; e, particularmente, pelo auge da indústria da construção, que terminou em uma bolha especulativa cuja explosão fez os investidores voltarem suas pautas a mercados especulativos, tais como de ouro e petróleo, causando uma superdemanda artificial, o que fez o preço do óleo cru chegar ao seu ápice de 147,27 dólares o barril, em julho de 2008.
Neste contexto, o óleo cru equatoriano, que depende da cotização do petróleo norte-americano West Texas Intermediate (WTI) – que é o parâmetro de óleo cru nos EUA - e basicamente é vendido tanto pela PetroEcuador como pelas companhias privadas estrangeiras do país, também elevou notavelmente seus preços.
Sendo um país economicamente dependente de tal produto, o crescimento médio do PIB equatoriano durante a primeira década do presente século foi de 4,4%, enquanto durante os dez anos anteriores tal indicador não superou 1,8%. O anterior indica que a partir do ano 2000, a economia equatoriana começou a consolidar em grande medida apoiada pelas condições favoráveis – preço do petróleo e remessas provenientes dos migrantes – gerando-se as condições adequadas para uma modernização tardia do sistema capitalista nacional.
Neste contexto, o setor mais dinâmico do capital nacional entendeu que poderia melhorar suas possibilidades de negócio propiciando um maior nível de consumo nos mercados internos através de certa divisão do excedente petroleiro – não da distribuição da riqueza que continua em mãos de poucos – e a incorporação ao mercado de setores populares mediante o endividamento familiar e financeirização popular (democratização do consumo com base em empréstimos do setor financeiro privado). Este é o papel que fundamentalmente desempenhou o governo de Rafael Correa durante o último período de bonança econômica no Equador.
Ao largo da primeira década do presente século, a maior fatia de participação no PIB da economia nacional foi o consumo privado, o qual representou uma média de 66,6% do PIB, convertendo-se em fator de maior contribuição ao crescimento nacional durante o período prévio à queda de preços do petróleo.
A dinamização da economia nacional tendo como motor o Estado, eixo da política econômica correísta, significou que os setores empresariais e financeiros foram os principais beneficiados em uma ação que carecia de riscos para os investimentos privados, pois se fazia base do erário público.
O respeito demonstrado pelo governo correísta à matriz de acumulação herdada da era neoliberal acarretou na inexistência da mais mínima transformação de caráter estrutural sobre os pilares que fundamentam os eixos constitutivos do poder no Equador; isso, apesar de setores historicamente esquecidos poderem se beneficiar durante o período de bonança de certas políticas assistencialistas, baseadas na transferência do excedente derivado de aprofundamento das políticas extrativistas. De quebra, significou que enquanto se ancorava em um propagandístico discurso soberanista, no interior do país se piorava cada vez mais a dependência econômica internacional dos mercados especulativos globais e se reprimarizassem substancialmente a economia global.
O modelo econômico funcionou e inclusive gozou de amplo apoio popular, milagre econômico diziam, enquanto durou o boom das commodities, indo abaixo toda a engrenagem das políticas sociais e econômicas correístas a partir da queda do preço do óleo cru em 2013.
É a partir de então, quando começam a se deteriorar certos serviços públicos, que a economia nacional se paralisa, o consumo interno cai e os indicadores de diminuição da pobreza e incremento da capacidade aquisitiva por parte dos trabalhadores passa a decair.
Em fevereiro de 2014, o governo do presidente Rafael Correa começaria a sentir o desgaste político de seu mandato, perdendo as eleições seccionais e as principais prefeituras do país para partidos de oposição. Os setores empresariais que em outro momento tinham sido beneficiados pelas políticas correístas, entendem ser hora de diminuir o gasto público, reduzir o volume do Estado e voltar a liberalizar a economia. Ante a nova falta de liquidez do Estado equatoriano, este deixou de ser funcional para seguir dinamizando a economia nacional, de modo que voltou a se colocar em questão a política de subsídios sociais.
O anterior significou incremento das mobilizações populares no conjunto do país e derivou em uma convocatória de greve/mobilização em agosto de 2015, de parte do movimento indígena e do sindicalismo não clientelista, que terminou vergonhosamente reprimida pelas forças de segurança do Estado.
O conflito entre Correa e Moreno
Em tais condições, e em meio a uma agressiva política de endividamento público que derivou na superação do volume atual de dívida externa, com sobras, dos níveis herdados da época neoliberal, o então mandatário equatoriano decidiu não se apresentar às eleições de 2017, mas deixou aberta a porta para uma nova postulação em 2021.
Estrategicamente, o correísmo considerou que era melhor outro mandatário a proceder as políticas econômicas de ajuste já inapelavelmente necessárias ao país, permitindo assim uma regeneração da imagem de Rafael Correa, que estrategicamente voltaria em 2021 para “salvar” o Equador dos programas de ajuste, frutos de um déficit bruto, galopante e insustentável. Assim, em dezembro de 2015, a bancada oficialista aprovou forçosamente uma reforma constitucional que permitia a reeleição do mandatário para o período imediatamente posterior a uma legislatura marcada pela crise econômica herdada da gestão de saída.
Ainda assim, a estratégia para a volta ao poder de Correa passava pela necessidade de seguir controlando o aparato de Estado durante o atual período, bloqueando qualquer possibilidade de fiscalização e auditorias internas que pudesse se fazer sobre um modelo de gestão pública altamente corrupto, que significou durante dez anos a submissão de todos os poderes e órgãos de controle do Estado pelo Executivo.
Isso implicou na necessidade de a Aliança PAIS ganhar em 2017, ficando a maior parte das instituições públicas em mãos de ex-funcionários de provada proximidade com o ex-presidente. A única figura com a qual a Aliança PAIS contava para ganhar tais eleições era Lenin Moreno, que por suas funções de enviado especial do Secretário Geral da ONU sobre a Incapacidade e Acessibilidade residia em Genebra desde 2014, o que implicava no fato de ter se mantido à margem da degradação correísta dos últimos anos.
Devemos nos remeter mais atrás no passado histórico do Equador para encontrar um mandatário que depois de dez anos de gestão continuada do poder terminou seu período com certo respaldo político – apesar da decadência dos últimos anos – como era o caso de Rafael Correa. Apesar da polarização social criada ao redor de sua figura, Correa abandonou a poltrona presidencial ainda sob importante apoio social, fundamentalmente entre os setores populares, os quais reconheciam o impulso a projetos sociais de caráter assistencialista e o investimento realizado durante a última década no âmbito da infraestrutura e modernização do Estado. Ainda assim, foi uma grande concatenação acelerada de erros políticos estratégicos que fizeram com que o ex-mandatário perdesse a hegemonia política ainda mantida no país.
Com a chegada da nova administração de Lenin, o correísmo deixava em postos estratégicos grande parte de sua equipe anterior de gestão. Isso significava que mantinha o controle sobre enorme e desmedido aparato de propaganda governamental, articulado na década passada, tal como se fazia a respeito do controle sobre a produção – sobre a qual o Estado equatoriano tinha notável incidência durante os últimos dez anos – no altar das responsabilidades estabelecidas em torno da figura do vice-presidente da República, Jorge Glas, o principal homem de confiança de Rafael Correa no novo gabinete, que se mantinha como responsável da mudança de matriz produtiva e investimento em megaprojetos.
Mas ao tempo, o correísmo mantinha o controle também sobre a frente política do governo através de figuras como a primeira titular da Secretaria Nacional de Gestão Pública (Paola Pabón) e do conselheiro presidencial (Ricardo Patiño), o principal operador político dentro da Aliança PAIS durante a gestão anterior, tal como fazia a respeito da Assembleia Nacional – o legislativo equatoriano – através de seus operadores na bancada majoritária da Aliança PAIS.
Não contente, Rafael Correa controlava também, mediante o Conselho de Participação Cidadã e Controle Social, os órgãos de fiscalização e controle do aparato de Estado, cuja designação de responsável respondia integralmente a personalidades afinadas ao ex-presidente. Isso ocorreu em instituições como o Conselho Nacional Eleitoral, a Corte Constitucional, a Controladoria Geral do Estado, a Procuradoria Geral do Estado, o Tribunal Contencioso Eleitoral, o Conselho do Judiciário ou a Defensoria do Povo, entre outros.
Apesar das tensões entre Lenin Moreno e a ala dura correísta serem palpáveis, desde esse mesmo momento, da investidura do atual presidente da República, em 24 de maio passado, momento em que a nova administração descobriu o estado real das finanças públicas, foi a entrega da sede social da CONAIE – estrutura organizativa do movimento indígena e organização social mais importante do país – e o anúncio em julho passado dos primeiros indultos de líderes populares criminalizados durante o regime anterior que geraram reações desqualificadoras de Rafael Correa sobre seu sucessor.
A partir daí os operadores correístas localizados em funções de direção dos distintos meios públicos começam a articular uma campanha contra a imagem do presidente Moreno, aduzindo que o país voltava às políticas do passado e que se estava produzindo uma divisão de poderes com as elites oligárquicas, o que significou que a nova administração morenista nomeasse novos responsáveis em tais meios de comunicação e órgãos. Desta maneira, o ex-presidente Correa perdia o controle do imenso aparato de propaganda e comunicação cuja criação havia sido auspiciada por ele mesmo.
Um mês depois, em inícios de agosto e já com a água no pescoço pelas investigações judiciais que se faziam a respeito da trama da Odebrecht no Equador, o então vice-presidente Jorge Glas – que fora também o segundo mandatário durante a última fase da era Correa – emitia uma extensa carta pública contra o atual chefe de Estado, acusando-o de convergir com os setores politicamente mais reacionários do país. A ruptura de relações entre o presidente Moreno e Jorge Glas acarretou na inabilitação do cargo do segundo, o que trouxe a perda de controle por parte de Rafael Correa sobre o aparato produtivo e os investimentos nos megaprojetos implementados no país. Meses mais tarde e fruto de investigações judiciais anticorrupção, Jorge Glas terminaria ocupando uma cela na prisão número 4 de Quito e destituído do cargo. O correísmo perdia, portanto, também sua incidência no aparato produtivo.
Poucos dias depois do exabrupto vice-presidencial e em vias de solucionar este conflito, o presidente Moreno enviaria a Bruxelas – lugar de residência atual de Correa – os principais operadores políticos de governo, todos eles vinculados durante a gestão anterior do ex-mandatário, com o fim de reconduzir de forma amigável as relações com o ex-presidente. Para surpresa do Executivo, depois da volta a Quito da dita delegação, suas principais cabeças – Ricardo Patiño, Paola Pabón e Virgílio Hernandez – anunciavam em coletiva de imprensa a renúncia a seus cargos no Executivo. Desta maneira, Rafael Correa perdia o controle da frente política governamental.
Destruídos todos os canais de comunicação entre o correísmo e o governo morenista, o presidente Moreno anunciaria nos primeiros meses de outubro passado a convocação de uma Consulta Popular onde algumas perguntas tinham a ver com uma lógica de reforma institucional pós-caudilhista que levasse o país a um caminho de superação do regime anterior. Isso terminaria de dinamitar internamente o partido do governo. Os setores afins ao ex-mandatário determinaram a expulsão, de forma irregular, de Lenin Moreno da Aliança PAIS convocando sem legitimidade jurídica uma convenção nacional da organização política com escasso êxito de adesão. O fato anterior acarretou, depois de uma decisão do Tribunal Contencioso Eleitoral, na perda do correísmo do controle do próprio partido.
O último episódio deste mar de desacertos correístas se deu já em janeiro do presente ano, quando Correa chamou à desfiliação seus seguidores de Aliança PAIS, o que implicou também na perda de controle do legislativo, ficando com apenas 29 parlamentares, enquanto os outros 45 se alinharam a Lenín Moreno.
Em suma, apesar de ser difícil encontrar um ex-presidente que depois de dez anos de gestão mantivesse o nível de apoio de Correa, também é difícil encontrar algum que tenha demonstrado tal capacidade para dilapidá-lo tão rapidamente.
Consulta e pós-consulta
Foi assim que se chegou a 4 de fevereiro, momento em que o correísmo saboreou pela primeira vez uma derrota eleitoral. No fundo, assistimos algo que foi mais além da realização política de uma realidade indiscutível no Equador: o correísmo nunca construiu uma força social e política afim, mas utilizou o aparato de Estado operando sob lógicas clientelistas em favor de um partido de governo e da construção da imagem midiática de Rafael Correa como um grande caudilho populista. Isso implicou em que, após o abandono da cadeira presidencial e da recusa de seus caprichos nas instituições do Estado, seu apoio político diminuísse notavelmente.
A sociedade equatoriana votou pela conformação de um regime de transição que permitia superar a herança implantada pelo governo anterior, gerando as condições para a construção de um novo cenário político após o fim da hegemonia correísta. Foi cortado o cordão umbilical que vinculava o novo governo ao anterior, o que desabilita a narrativa correísta de que Lenin Moreno ocupa a presidência do país graças ao endosso de votos derivado da figura de Rafael Correa.
Após a consulta o país entra em uma nova fase política. Por um lado, o presidente Lenin Moreno ganhou momentaneamente sua disputa com o antecessor, apesar de Correa ainda manter um terço do eleitorado equatoriano. Correa e seus seguidores, após a desfiliação da Aliança PAIS, estão obrigados a conformar um novo movimento político nacional, apesar de a popularidade de seu líder estar em decadência. Correa, consciente de que o setor de antigos líderes da Aliança PAIS que o acompanham nesta nova aventura acrescentam realmente pouco, dada a má imagem diante da sociedade, está obrigado a liderar pessoalmente a construção do novo partido. Será uma tarefa urgente e nada fácil para o neocorreísmo criar uma nova figura política que tenha chances de disputar a presidência da República em 2021.
Por sua parte, a vontade de tal tendência é ocupar o espaço político da esquerda equatoriana, algo que já fizeram em 2006, apesar dos desencontros entre seu discurso e sua prática. Conseguir tal objetivo passa por bloquear qualquer possibilidade de construção de alternativas políticas no campo popular, algo urgentemente necessário para um país que sofre de uma esquerda cujo discurso político se encontra sem capacidade de sintonia com a sociedade, onde não existe geração de novas lideranças, e que se vê carente de construir uma proposta convincente para um novo modelo de sociedade e país.
Apesar de ser certo que a esquerda política e social equatoriana foi fracionada, em muitos casos cooptada e até perseguida pelo regime correísta durante os últimos dez anos, também é certo que existe uma incapacidade política por parte de sua endogâmica dirigência para se reinventar e reposicionar, com um discurso adaptado ao momento atual do país. O mero fato de que grande parte de tal esquerda apoiou em sua lógica anticorreísta a candidatura do conservador Guillermo Lasso no segundo turno das últimas eleições presidenciais é uma demonstração palpável de sua desorientação política e descrédito do que atualmente gozam na cidadania equatoriana. Nas fileiras conservadoras, as forças políticas que até o momento decidiram não fazer oposição política contumaz ao atual governo mudaram de atitude.
A proximidade de eleições seccionais, daqui um ano, faz as organizações políticas da direita voltarem a assumir protagonismo depois de uma aliança antinatural que permitiu a sensibilidades ideológicas muito diferentes um pacto de não agressão em troca de trabalharem, todos juntos, pelo Sim nesta consulta, em nome da finalidade de enterrar politicamente o correísmo.
Meios de comunicação, setores empresariais e forças políticas conservadoras já anunciaram mudanças sobre sua ação diante do governo de Lenín Moreno, o que significará o aumento da pressão política e possivelmente de manifestações de rua, no sentido de que o governo adote posições mais reacionárias fundamentalmente no âmbito da política econômica.
Em todo caso, os setores da direita se mantêm divididos, existindo duas cabeças, até agora politicamente enfrentadas, que respondem a grupos de interesses diferentes. Tanto Guillermo Lasso, de forma aberta, como Jaime Nebot, de maneira mais sutil, aspiram à presidência da República no ano de 2021 ou até antes, se forem capazes de forçar o fim antecipado do mandato morenista, um governo sobre o qual visualizam debilidades não existentes no anterior.
Portanto, o governo nacional enfrenta uma situação inédita a partir de agora, a qual consistirá em receber de forma indiscriminada ataques tanto da direita – inclusive meios de comunicação privados e lobbies empresariais como nesta pretendida nova esquerda correísta. Que Lenín Moreno e sua equipe de gestão sejam capazes de fazer frente a tais pressões está por ser visto. De todo modo, a estratégia de um e outro lado já começou, em alguns casos até com apoio internacional, tal como no caso de Correa, que em breve disporá da plataforma televisiva Russian Today (RT), um meio de comunicação sensacionalista a serviço do aparato de propaganda de Vladimir Putin, como ferramenta de ataque ao atual governo.
Das sete perguntas impulsionadas pelo Executivo, as três primeiras tinham relação direta com o correísmo, abordando temas como:
• A supressão de direitos políticos de condenados por corrupção, o que afeta a um número cada vez maior de altos funcionários que formaram parte do núcleo de poder do regime anterior – já há uma dezena de ex-ministros correístas que se encontram imputados em diferentes processos e este número aumentará – e que poderia terminar afetando o próprio Rafael Correa.
• A eliminação da emenda constitucional aprovada na última fase do governo anterior, pela qual implementava a reeleição indefinida nos cargos de gestão pública a partir de 2021, e que permitia a Correa voltar a se apresentar, tal como era sua intenção, no próximo pleito presidencial;
• E a recomposição do Conselho de Participação Cidadã e Controle Social – popularmente conhecido como o quinto poder constitucional – cujos membros designavam parte dos titulares das instituições do país, o que permitiu ao aparato correísta seguir controlando a estrutura do Estado, apesar de o ex-presidente não ocupar mais o cargo máximo.
O que foi o correísmo?
Compreender a situação atual do Equador significa entender o que foi isso que se convencionou chamar de correísmo e porque deixou de ser funcional neste momento para as elites equatorianas.
Desde 1997, a partir do governo de Abdalá Bucaram, o Equador inaugurou uma etapa de crise institucional permanente que fez com que nenhum presidente eleito desde então nas urnas conseguisse terminar o mandato.
Evidentemente, isso gerava grande instabilidade política e se tornou um fator de desequilíbrio importante a respeito de uma política de investimentos que se faziam cada vez mais urgentes e necessárias para a modernização capitalista que o país deveria empreender após a crise financeira de 1999 e 2000.
Com a entrada do presente século, a economia mundial se estabilizou, superando várias e importantes crises sofridas em diversos países do mundo – México e Venezuela (1994), Tailândia, Indonésia, Filipinas, Taiwan, Coreia do Sul (1997), Rússia (1998), Brasil (1999) ou Argentina (2001) – o que permitiu a melhora econômica internacional, com taxas de crescimento de 4% a 6% no começo da década, até a chegada da crise financeira global de 2008.
Da mesma forma, desde 2003 os preços das commodities aumentaram pelos efeitos dos furacões, como o Katrina, em instalações petroleiras; o crescimento na economia; e, particularmente, pelo auge da indústria da construção, que terminou em uma bolha especulativa cuja explosão fez os investidores voltarem suas pautas a mercados especulativos, tais como de ouro e petróleo, causando uma superdemanda artificial, o que fez o preço do óleo cru chegar ao seu ápice de 147,27 dólares o barril, em julho de 2008.
Neste contexto, o óleo cru equatoriano, que depende da cotização do petróleo norte-americano West Texas Intermediate (WTI) – que é o parâmetro de óleo cru nos EUA - e basicamente é vendido tanto pela PetroEcuador como pelas companhias privadas estrangeiras do país, também elevou notavelmente seus preços.
Sendo um país economicamente dependente de tal produto, o crescimento médio do PIB equatoriano durante a primeira década do presente século foi de 4,4%, enquanto durante os dez anos anteriores tal indicador não superou 1,8%. O anterior indica que a partir do ano 2000, a economia equatoriana começou a consolidar em grande medida apoiada pelas condições favoráveis – preço do petróleo e remessas provenientes dos migrantes – gerando-se as condições adequadas para uma modernização tardia do sistema capitalista nacional.
Neste contexto, o setor mais dinâmico do capital nacional entendeu que poderia melhorar suas possibilidades de negócio propiciando um maior nível de consumo nos mercados internos através de certa divisão do excedente petroleiro – não da distribuição da riqueza que continua em mãos de poucos – e a incorporação ao mercado de setores populares mediante o endividamento familiar e financeirização popular (democratização do consumo com base em empréstimos do setor financeiro privado). Este é o papel que fundamentalmente desempenhou o governo de Rafael Correa durante o último período de bonança econômica no Equador.
Ao largo da primeira década do presente século, a maior fatia de participação no PIB da economia nacional foi o consumo privado, o qual representou uma média de 66,6% do PIB, convertendo-se em fator de maior contribuição ao crescimento nacional durante o período prévio à queda de preços do petróleo.
A dinamização da economia nacional tendo como motor o Estado, eixo da política econômica correísta, significou que os setores empresariais e financeiros foram os principais beneficiados em uma ação que carecia de riscos para os investimentos privados, pois se fazia base do erário público.
O respeito demonstrado pelo governo correísta à matriz de acumulação herdada da era neoliberal acarretou na inexistência da mais mínima transformação de caráter estrutural sobre os pilares que fundamentam os eixos constitutivos do poder no Equador; isso, apesar de setores historicamente esquecidos poderem se beneficiar durante o período de bonança de certas políticas assistencialistas, baseadas na transferência do excedente derivado de aprofundamento das políticas extrativistas. De quebra, significou que enquanto se ancorava em um propagandístico discurso soberanista, no interior do país se piorava cada vez mais a dependência econômica internacional dos mercados especulativos globais e se reprimarizassem substancialmente a economia global.
O modelo econômico funcionou e inclusive gozou de amplo apoio popular, milagre econômico diziam, enquanto durou o boom das commodities, indo abaixo toda a engrenagem das políticas sociais e econômicas correístas a partir da queda do preço do óleo cru em 2013.
É a partir de então, quando começam a se deteriorar certos serviços públicos, que a economia nacional se paralisa, o consumo interno cai e os indicadores de diminuição da pobreza e incremento da capacidade aquisitiva por parte dos trabalhadores passa a decair.
Em fevereiro de 2014, o governo do presidente Rafael Correa começaria a sentir o desgaste político de seu mandato, perdendo as eleições seccionais e as principais prefeituras do país para partidos de oposição. Os setores empresariais que em outro momento tinham sido beneficiados pelas políticas correístas, entendem ser hora de diminuir o gasto público, reduzir o volume do Estado e voltar a liberalizar a economia. Ante a nova falta de liquidez do Estado equatoriano, este deixou de ser funcional para seguir dinamizando a economia nacional, de modo que voltou a se colocar em questão a política de subsídios sociais.
O anterior significou incremento das mobilizações populares no conjunto do país e derivou em uma convocatória de greve/mobilização em agosto de 2015, de parte do movimento indígena e do sindicalismo não clientelista, que terminou vergonhosamente reprimida pelas forças de segurança do Estado.
O conflito entre Correa e Moreno
Em tais condições, e em meio a uma agressiva política de endividamento público que derivou na superação do volume atual de dívida externa, com sobras, dos níveis herdados da época neoliberal, o então mandatário equatoriano decidiu não se apresentar às eleições de 2017, mas deixou aberta a porta para uma nova postulação em 2021.
Estrategicamente, o correísmo considerou que era melhor outro mandatário a proceder as políticas econômicas de ajuste já inapelavelmente necessárias ao país, permitindo assim uma regeneração da imagem de Rafael Correa, que estrategicamente voltaria em 2021 para “salvar” o Equador dos programas de ajuste, frutos de um déficit bruto, galopante e insustentável. Assim, em dezembro de 2015, a bancada oficialista aprovou forçosamente uma reforma constitucional que permitia a reeleição do mandatário para o período imediatamente posterior a uma legislatura marcada pela crise econômica herdada da gestão de saída.
Ainda assim, a estratégia para a volta ao poder de Correa passava pela necessidade de seguir controlando o aparato de Estado durante o atual período, bloqueando qualquer possibilidade de fiscalização e auditorias internas que pudesse se fazer sobre um modelo de gestão pública altamente corrupto, que significou durante dez anos a submissão de todos os poderes e órgãos de controle do Estado pelo Executivo.
Isso implicou na necessidade de a Aliança PAIS ganhar em 2017, ficando a maior parte das instituições públicas em mãos de ex-funcionários de provada proximidade com o ex-presidente. A única figura com a qual a Aliança PAIS contava para ganhar tais eleições era Lenin Moreno, que por suas funções de enviado especial do Secretário Geral da ONU sobre a Incapacidade e Acessibilidade residia em Genebra desde 2014, o que implicava no fato de ter se mantido à margem da degradação correísta dos últimos anos.
Devemos nos remeter mais atrás no passado histórico do Equador para encontrar um mandatário que depois de dez anos de gestão continuada do poder terminou seu período com certo respaldo político – apesar da decadência dos últimos anos – como era o caso de Rafael Correa. Apesar da polarização social criada ao redor de sua figura, Correa abandonou a poltrona presidencial ainda sob importante apoio social, fundamentalmente entre os setores populares, os quais reconheciam o impulso a projetos sociais de caráter assistencialista e o investimento realizado durante a última década no âmbito da infraestrutura e modernização do Estado. Ainda assim, foi uma grande concatenação acelerada de erros políticos estratégicos que fizeram com que o ex-mandatário perdesse a hegemonia política ainda mantida no país.
Com a chegada da nova administração de Lenin, o correísmo deixava em postos estratégicos grande parte de sua equipe anterior de gestão. Isso significava que mantinha o controle sobre enorme e desmedido aparato de propaganda governamental, articulado na década passada, tal como se fazia a respeito do controle sobre a produção – sobre a qual o Estado equatoriano tinha notável incidência durante os últimos dez anos – no altar das responsabilidades estabelecidas em torno da figura do vice-presidente da República, Jorge Glas, o principal homem de confiança de Rafael Correa no novo gabinete, que se mantinha como responsável da mudança de matriz produtiva e investimento em megaprojetos.
Mas ao tempo, o correísmo mantinha o controle também sobre a frente política do governo através de figuras como a primeira titular da Secretaria Nacional de Gestão Pública (Paola Pabón) e do conselheiro presidencial (Ricardo Patiño), o principal operador político dentro da Aliança PAIS durante a gestão anterior, tal como fazia a respeito da Assembleia Nacional – o legislativo equatoriano – através de seus operadores na bancada majoritária da Aliança PAIS.
Não contente, Rafael Correa controlava também, mediante o Conselho de Participação Cidadã e Controle Social, os órgãos de fiscalização e controle do aparato de Estado, cuja designação de responsável respondia integralmente a personalidades afinadas ao ex-presidente. Isso ocorreu em instituições como o Conselho Nacional Eleitoral, a Corte Constitucional, a Controladoria Geral do Estado, a Procuradoria Geral do Estado, o Tribunal Contencioso Eleitoral, o Conselho do Judiciário ou a Defensoria do Povo, entre outros.
Apesar das tensões entre Lenin Moreno e a ala dura correísta serem palpáveis, desde esse mesmo momento, da investidura do atual presidente da República, em 24 de maio passado, momento em que a nova administração descobriu o estado real das finanças públicas, foi a entrega da sede social da CONAIE – estrutura organizativa do movimento indígena e organização social mais importante do país – e o anúncio em julho passado dos primeiros indultos de líderes populares criminalizados durante o regime anterior que geraram reações desqualificadoras de Rafael Correa sobre seu sucessor.
A partir daí os operadores correístas localizados em funções de direção dos distintos meios públicos começam a articular uma campanha contra a imagem do presidente Moreno, aduzindo que o país voltava às políticas do passado e que se estava produzindo uma divisão de poderes com as elites oligárquicas, o que significou que a nova administração morenista nomeasse novos responsáveis em tais meios de comunicação e órgãos. Desta maneira, o ex-presidente Correa perdia o controle do imenso aparato de propaganda e comunicação cuja criação havia sido auspiciada por ele mesmo.
Um mês depois, em inícios de agosto e já com a água no pescoço pelas investigações judiciais que se faziam a respeito da trama da Odebrecht no Equador, o então vice-presidente Jorge Glas – que fora também o segundo mandatário durante a última fase da era Correa – emitia uma extensa carta pública contra o atual chefe de Estado, acusando-o de convergir com os setores politicamente mais reacionários do país. A ruptura de relações entre o presidente Moreno e Jorge Glas acarretou na inabilitação do cargo do segundo, o que trouxe a perda de controle por parte de Rafael Correa sobre o aparato produtivo e os investimentos nos megaprojetos implementados no país. Meses mais tarde e fruto de investigações judiciais anticorrupção, Jorge Glas terminaria ocupando uma cela na prisão número 4 de Quito e destituído do cargo. O correísmo perdia, portanto, também sua incidência no aparato produtivo.
Poucos dias depois do exabrupto vice-presidencial e em vias de solucionar este conflito, o presidente Moreno enviaria a Bruxelas – lugar de residência atual de Correa – os principais operadores políticos de governo, todos eles vinculados durante a gestão anterior do ex-mandatário, com o fim de reconduzir de forma amigável as relações com o ex-presidente. Para surpresa do Executivo, depois da volta a Quito da dita delegação, suas principais cabeças – Ricardo Patiño, Paola Pabón e Virgílio Hernandez – anunciavam em coletiva de imprensa a renúncia a seus cargos no Executivo. Desta maneira, Rafael Correa perdia o controle da frente política governamental.
Destruídos todos os canais de comunicação entre o correísmo e o governo morenista, o presidente Moreno anunciaria nos primeiros meses de outubro passado a convocação de uma Consulta Popular onde algumas perguntas tinham a ver com uma lógica de reforma institucional pós-caudilhista que levasse o país a um caminho de superação do regime anterior. Isso terminaria de dinamitar internamente o partido do governo. Os setores afins ao ex-mandatário determinaram a expulsão, de forma irregular, de Lenin Moreno da Aliança PAIS convocando sem legitimidade jurídica uma convenção nacional da organização política com escasso êxito de adesão. O fato anterior acarretou, depois de uma decisão do Tribunal Contencioso Eleitoral, na perda do correísmo do controle do próprio partido.
O último episódio deste mar de desacertos correístas se deu já em janeiro do presente ano, quando Correa chamou à desfiliação seus seguidores de Aliança PAIS, o que implicou também na perda de controle do legislativo, ficando com apenas 29 parlamentares, enquanto os outros 45 se alinharam a Lenín Moreno.
Em suma, apesar de ser difícil encontrar um ex-presidente que depois de dez anos de gestão mantivesse o nível de apoio de Correa, também é difícil encontrar algum que tenha demonstrado tal capacidade para dilapidá-lo tão rapidamente.
Consulta e pós-consulta
Foi assim que se chegou a 4 de fevereiro, momento em que o correísmo saboreou pela primeira vez uma derrota eleitoral. No fundo, assistimos algo que foi mais além da realização política de uma realidade indiscutível no Equador: o correísmo nunca construiu uma força social e política afim, mas utilizou o aparato de Estado operando sob lógicas clientelistas em favor de um partido de governo e da construção da imagem midiática de Rafael Correa como um grande caudilho populista. Isso implicou em que, após o abandono da cadeira presidencial e da recusa de seus caprichos nas instituições do Estado, seu apoio político diminuísse notavelmente.
A sociedade equatoriana votou pela conformação de um regime de transição que permitia superar a herança implantada pelo governo anterior, gerando as condições para a construção de um novo cenário político após o fim da hegemonia correísta. Foi cortado o cordão umbilical que vinculava o novo governo ao anterior, o que desabilita a narrativa correísta de que Lenin Moreno ocupa a presidência do país graças ao endosso de votos derivado da figura de Rafael Correa.
Após a consulta o país entra em uma nova fase política. Por um lado, o presidente Lenin Moreno ganhou momentaneamente sua disputa com o antecessor, apesar de Correa ainda manter um terço do eleitorado equatoriano. Correa e seus seguidores, após a desfiliação da Aliança PAIS, estão obrigados a conformar um novo movimento político nacional, apesar de a popularidade de seu líder estar em decadência. Correa, consciente de que o setor de antigos líderes da Aliança PAIS que o acompanham nesta nova aventura acrescentam realmente pouco, dada a má imagem diante da sociedade, está obrigado a liderar pessoalmente a construção do novo partido. Será uma tarefa urgente e nada fácil para o neocorreísmo criar uma nova figura política que tenha chances de disputar a presidência da República em 2021.
Por sua parte, a vontade de tal tendência é ocupar o espaço político da esquerda equatoriana, algo que já fizeram em 2006, apesar dos desencontros entre seu discurso e sua prática. Conseguir tal objetivo passa por bloquear qualquer possibilidade de construção de alternativas políticas no campo popular, algo urgentemente necessário para um país que sofre de uma esquerda cujo discurso político se encontra sem capacidade de sintonia com a sociedade, onde não existe geração de novas lideranças, e que se vê carente de construir uma proposta convincente para um novo modelo de sociedade e país.
Apesar de ser certo que a esquerda política e social equatoriana foi fracionada, em muitos casos cooptada e até perseguida pelo regime correísta durante os últimos dez anos, também é certo que existe uma incapacidade política por parte de sua endogâmica dirigência para se reinventar e reposicionar, com um discurso adaptado ao momento atual do país. O mero fato de que grande parte de tal esquerda apoiou em sua lógica anticorreísta a candidatura do conservador Guillermo Lasso no segundo turno das últimas eleições presidenciais é uma demonstração palpável de sua desorientação política e descrédito do que atualmente gozam na cidadania equatoriana. Nas fileiras conservadoras, as forças políticas que até o momento decidiram não fazer oposição política contumaz ao atual governo mudaram de atitude.
A proximidade de eleições seccionais, daqui um ano, faz as organizações políticas da direita voltarem a assumir protagonismo depois de uma aliança antinatural que permitiu a sensibilidades ideológicas muito diferentes um pacto de não agressão em troca de trabalharem, todos juntos, pelo Sim nesta consulta, em nome da finalidade de enterrar politicamente o correísmo.
Meios de comunicação, setores empresariais e forças políticas conservadoras já anunciaram mudanças sobre sua ação diante do governo de Lenín Moreno, o que significará o aumento da pressão política e possivelmente de manifestações de rua, no sentido de que o governo adote posições mais reacionárias fundamentalmente no âmbito da política econômica.
Em todo caso, os setores da direita se mantêm divididos, existindo duas cabeças, até agora politicamente enfrentadas, que respondem a grupos de interesses diferentes. Tanto Guillermo Lasso, de forma aberta, como Jaime Nebot, de maneira mais sutil, aspiram à presidência da República no ano de 2021 ou até antes, se forem capazes de forçar o fim antecipado do mandato morenista, um governo sobre o qual visualizam debilidades não existentes no anterior.
Portanto, o governo nacional enfrenta uma situação inédita a partir de agora, a qual consistirá em receber de forma indiscriminada ataques tanto da direita – inclusive meios de comunicação privados e lobbies empresariais como nesta pretendida nova esquerda correísta. Que Lenín Moreno e sua equipe de gestão sejam capazes de fazer frente a tais pressões está por ser visto. De todo modo, a estratégia de um e outro lado já começou, em alguns casos até com apoio internacional, tal como no caso de Correa, que em breve disporá da plataforma televisiva Russian Today (RT), um meio de comunicação sensacionalista a serviço do aparato de propaganda de Vladimir Putin, como ferramenta de ataque ao atual governo.